Um homem feminino?
_"Ou você muda ou se muda! Do jeito que está não dá mais pra ficar! Decida..." - a voz de Mauri ainda ressoava doída em seus ouvidos...
O coração apertava, a boca seca, a cabeça dolorida...
Como será que as coisas tinham ficado assim? Será que ele realmente tinha se tornado igualzinho ao velho Serafim?
Ainda trazia na mente e na alma, a dor de ver as humilhações que a mãe sofria...
Um filho atrás do outro, mais de uma dúzia de pirralhos e ele o quarto dessa turma, que por algum motivo era quatro anos mais novo que o irmão...
Parece que a mãe adoecera sério e ficara por bom tempo internada e ao voltar para casa ficara mais de ano acamada... Ouvira falarem baixinho, que foi aí que tia Santina cuidara da casa e por um tempo também da cama do velho Serafim...
Quanto ódio essa lembrança lhe trazia, mesmo passados tantos anos...
A mãe doente e aquela mulher ali, quando menino não entendia bem, só ouvia o choro da mãe e sentia o clima pesado...
Quando cresceu e se tornou maiorzinho percebeu coisas bem estranhas...
E tomou as dores da mãe tão frágil...
O padre do povoado, por algum motivo interviu e ameaçou o velho Serafim com o fogo do inferno, suplício eterno sem direito ao purgatório e assim quando Juvenal já tinha seus sete anos tia Santina sumiu de suas vidas...
Pena que as aflições da mãe não terminaram, grávida novamente, saúde agora mais frágil por causa dos trigêmeos... O comentário era geral, o velho Serafim é que era macho!
E Juvenal crescia vendo sua mãe sofrendo, enxugando suas lágrimas e tentando ao seu modo infantil aliviar as suas dores...
Buscava a água, matava os frangos, ajudava buscando na horta as verduras para fazer a comida e quando o velho Serafim ia a cidade até ajudava a mãe a lavar roupa, preparar o almoço e fazer uma rápida faxina...
Até que um dia a carroça quebrou e o velho Serafim chegou mais cedo e o pegou com a mão na massa de avental ajudando a mãe na cozinha...
Levou socos na cara, no corpo, a mãe gritava e ele pobre criança com seus treze anos gemia...
O velho Serafim o chamava de desgraça, vergonha da família e maricas...
Apanhou tanto que nunca mais ousou ajudar a pobre mãe, só de pensar parecia que todo corpo lhe doía horrores...
Mas jurara que se um dia tivesse uma mulher com ela agiria diferente...
E agora a Mauri no meio da discussão o comparara ao velho Serafim! Como assim, era igual ao pai?!
Ele sabia que era meio bronco, é verdade, mas procurava ser carinhoso com a esposa, procurava ouvir ela falar, saía com ela, sempre a respeitara e nunca, nunca olhara para outra mulher! Era muito diferente do pai, sem dúvida alguma! Era um homem bom, entretanto...
Quando Mauri engravidara dos trigêmeos teve de parar de trabalhar, era repouso absoluto e depois para cuidar de três crianças, era muita canseira, mas ele prometera a esposa que logo que eles crescessem um pouquinho ela voltaria à ativa.
Era uma mulher brilhante, ousada, competente, foi muita sorte continuarem amigos depois da faculdade e mais sorte ainda, nas idas e vindas da vida, eles terem se apaixonado e casado...
Juvenal se pegava pensando em sua história e nem acreditava! Saíra do sertão da Paraíba para ser oficeboy de um tio "rico" que tinha negócios em São Paulo, o tio convecera o velho Serafim de que o garoto era inteligente e era um desperdício deixar o menino preso naquela pobreza do sertão...
O pai devia dinheiro ao tio e vendo que isso alegrava-o cedeu e lá foi Juvenal morar em São Paulo...
O tio fez questão de que ele estudasse, era o cúmulo ser analfabeto aos quinze anos!
Juvenal agarrou a oportunidade, como o próprio tio disse, era inteligente e tinha muita garra e força de vontade. Se esse era o caminho para nunca mais voltar àquela pobreza, pagaria o preço, com alegria e gratidão...
Estudou, fez contabilidade e na na faculdade conheceu a Mauritânia, Mauri, como gostava de ser chamada...
Mauri era a luz de sua vida! Com ela descobrira a felicidade e o que era um verdadeiro lar.
Ela ganhava bem, era gerente de uma empresa e o dono ficou triste com a decisão dela em parar de trabalhar e cuidar dos filhos... Disse que as portas sempre estariam abertas e foram essas portas abertas que agora salvaram a situação financeira da família....
Juvenal era bem sucedido, ganhava o dobro de Mauri na época em que os bebês chegaram e com seu salário dava conta de todas as despesas com folga.
Mauri queria voltar a trabalhar e ele se opusera: "lugar da mãe é junto aos filhos, eles precisam de você!"
E com essa com essa conversa quatro anos se passaram...
Mauri cuidava sozinha da casa e das crianças e tinham uma faxineira duas vezes por semana, era uma vida boa, tranquila...
Mas aí veio a crise, a pandemia global e Juvenal perdeu o emprego!
Pior, nem fundo de garantia tinha, porque em dezembro retirara tudo para quitar o apartamento e com o condomínio e as outras despesas, a alta prestação do carro, ficaram endividados...
Mauri insistia em procurar emprego, não dava pra ficar assim, parados vendo o tempo passar...
Juvenal se sentia perplexo, totalmente deprimido, nunca pensou que perderia tudo assim num só golpe...
Dispensaram a faxineira e o serviço de Mauri aumentou com um macho estressado em casa o dia inteiro...
Até que ela recebeu um telefonema... O antigo patrão falecera e a esposa idosa nada entendia da empresa, precisava agir rápido e lembrou-se da Mauri!
Ela foi prontamente, era a salvação, milagre divino...
O trabalho era intenso, tudo na empresa estava uma desordem e ela chegava tarde em casa...
Ao chegar quase tudo estava por fazer, não podia sentar e descansar...
Juvenal só brincava com as crianças e dava uma mamadeira, esquentava uma comida...
Mas a casa estava sempre um lixo e ele sentado na sala com as crianças na sala vendo TV...
Depois de três meses Mauri explodiu, estava cheia de falar com jeito, deu seu ultimato!
E agora, a razão de Juvenal dizia que ela estava certa, ele deveria assumir as tarefas domésticas e ser mais responsável com a educação dos filhos...
Mas na sua cabeça ecoava a voz do velho Serafim, batendo e gritando: " seu maricas! vergonha da família..." Essa lembrança lhe causava náuseas, mesmo passados tantos anos... Para Juvenal, por mais que achasse justo, era sufocante se ver de novo fazendo serviços domésticos, era como se o velho Serafim estivesse ao seu lado pronto a socar-lhe novamente o rosto e suava frio...
Até que por acaso ouviu a velha vitrola do vizinho tocando uma antiga música interpretada pelo Ney Matogrosso:
"Ser um homem feminino
Não fere o meu lado masculino
Se Deus é menina e menino
Sou masculino e feminino
Olhei tudo que aprendi
E um belo dia eu vi
Que ser um homem feminino
Não fere o meu lado masculino"
Sim, era verdade! Sua família, sua esposa, seus filhos valiam muito mais do que os conceitos arcaicos do velho Serafim sobre a masculinidade! Ele iria mudar, precisava mudar... Não tinha mais condições de viver preso a fantasmas do passado! Dirigiu-se a cozinha, vestiu o avental, foi a área de serviço, tirou a roupa do varal e colocou outras na lavadora. Ainda se sentia um pouco sufocado, lágrimas teimando em escorrer pelo rosto...
Foi até a pia e começou a lavar a louça, o mal estar foi diminuindo, parecia ir embora com a água que enxaguava os pratos... Louça lavada, alma lavada e muita força de vontade para esse novo recomeço...
Ele devia isso a mãe, que tanto sofrera com o machismo do pai e devia isso a si mesmo, pois jurara amar sua esposa ainda mais do que um dia amara a sua mãe...