Era final do dia e seu último cliente já esperava no corredor, a mulher de cabelos negros abriu a porta do consultório e chamou-o: – Max Carvalho Almeida. Por favor, entre.
O homem de terno cinzento e gravata vermelha pegou suas coisas e foi em direção a doutora: – Sim, Senhorita – sorriu segurando seu chapéu contra o peito e adentrando a sala.
Os dois sentaram de frente um ao outro e a consulta começou: – Já faz algum tempo, Senhor Max. Como tem estado?
– Oh! Estou bem, Doutora, obrigado por perguntar. E você? Bem, posso imaginar – soltou uma olhada por toda a Mulher.
– Sim, obrigado – respondeu seca e tediosa. – O Senhor lembra aonde paramos na última visita?
– Acredito ter sido na origem ou infame infância, não?
– Sim, está certo. Por favor, conte o que lembra sobre sua infância, Senhor Almeida.
– Por favor, não use esse sobrenome. Só Max Carvalho está mais que bom, pretendo tirar esse sobrenome de minha nomeação – e sorriu ao final como se desejasse não ser mal interpretado.
– Claro, como sentir-se melhor – olhou a ficha e retomou – O senhor lembra de como era sua casa? Por exemplo.
– Sim, lembro bem... – Observou a paisagem depois da janela aberta.
A Mulher esperou por um instante, sem sinais de continuidade da frase ela vou a falar: – Pois, conte-me.
– Não, não quero falar sobre isso. Seria uma perda de tempo, mal passei por lá – puxou as calças cruzando as pernas – Que acha de falarmos sobre um amigo meu?
A Doutora analisou por um momento a proposta olhando sem desvio seu olhar do paciente para assentir com a cabeça que continuasse.
“Eu não sabia muito sobre ele na primeira vez que o enfrentei cara-a-cara, só as coisas que falavam dele eram de meu conhecimento, como a cor prata de seus cabelos que não guardavam melanina alguma ou boatos toscos sobre ser uma criatura sobrenatural. Seria idiota acreditar em quaisquer daquelas fofocas – muitas vezes maldosas – mas eu dizia crer para no fundo gritar que só as suportava. Contudo, a primeira vez que meus olhos pousaram em seu ser chamativo, principalmente para um rapaz, todos os mal-ditos vieram como tsunami abalar minha razão.
– Aquele seria o Feliz Cruzeiro Montanha Alguma Coisa?! – o rapaz que me acompanhava riu e confirmou minha suspeita.”
– Félix Monte Cruz Almor, eu acho tão engraçado minha dificuldade de lembrar seu nome naquela época! – riu de suas memórias.
– Sim... – respondeu vagamente a doutora que escrevia na ficha de Max, concentrada.
O homem calou-se e fixou seus olhos na mesma até que terminasse suas anotações desnecessárias no seu ponto de vista; só quando a Doutora sessou sua escrita, ele voltou a contar a história.
“Como dizia, meu amigo confirmou a identificação. Félix estava sentado as sombras de uma árvore e observava as crianças brincarem na praça comunitária à frente. Ver ele sozinho e desejoso despertou algo em mim que me cativava a atenção até meu companheiro chamar-me para continuar nosso caminho. Não lembro bem, mas algumas piadas surgiram sobre o garoto naquele dia... Por minha culpa”
– O Senhor ficou com raiva dos garotos naquela época? Ou fica agora?
– Doutora, eu não o conhecia, então encarava como brincadeira. Atualmente vejo como imaturidade, afinal éramos jovens demais para entender o poder das palavras sobre os outros, pelo menos até... – ficou pensativo em seu próprio mundo.
– Sim, entendo – chamou a atenção de seu cliente. – Mas “até”?
– Até acontecer com a gente é claro – exclamou como se fosse a coisa mais óbvia do mundo.
“Depois daquele dia, eu sempre passava observando discretamente a praça e a nomeada por mim: “Árvore do Félix”. Decorei os dias que aparecia e mesmo querendo ir falar com ele, eu estava ocupado demais com meus amigos e nossas aventuras. Bem, até notarem meu interesse no garoto, parece que eu não era o ninja discreto que imaginava ser.
E assim sem mais ou menos, sem qualquer aviso prévio ou sinal; eles me encurralaram no banheiro. Eu ainda lembro o quanto suei frio naquele dia.
– Do que estão falando?! – eu sabia o quanto assustadores aqueles mais de dez rapazes podiam ser.
– Achou que a gente não ia notar as olhadas que dá toda vez que passamos pelo bosta do Félix? Bixinha! – empurrou-me, Carlos.
– É bixa! Quer beijar aquele esquisitão? – Todos riram quando Garcia comentou.
– Eu não... Não sou “bixa”! Qual é, Galera!?
– Acho que é isso que todos falam, não é mesmo Pessoal?
– Olha, eu acho que é isso mesmo, tipo o Oliveira!
Todos entre olharam-se e riam como se lhes trouxesse boas memórias. Deixando meu eu de quatorze ou quinze anos tremendo até a alma, não tinha saída.
– Talvez a gente devesse te satisfazer, você já olhou com desejo para todos nós? Quem já foi homenageado com uma batidinha?
– Carlos! Que nojo! – disse Gerônimo com desprezo por mim.
– Cala a boca! Merda! – Berrou, Carlos.
– Eu não fiz isso... Não quero que me toquem... – Carlos é um ou dois anos mais velho que eu, além de na época ser mais alto e maior. Conseguiria sair dali se não estivesse participando, mas a situação era diferente com ele apresente.
– Vamos te comer gostoso, mas não como uma mulher, vai ser bem bruto. Afinal somos amigos, não? – enquanto falava isso, segurou-me contra a parede tirando meus pés do chão. Indefeso, puxou minha bermuda e mijei-o todo.
O grupo de garotos começou a rir tanto que alguns até chegaram a chorar, humilhado e sem paciência, Carlos jogou meu corpo no chão e iniciou um espancamento que foi seguido pelos demais contra mim. Ainda posso ouvir – mais claro que nunca – alguém perguntar: – Você ia mesmo fazer sexo com ele?
Uma gargalhada alta e a resposta: – Claro que não, eu estava só assustando ele. O que um bixinha quer andando com a gente?”
– Até hoje tenho dúvidas sobre isso...
– De onde vem essa dúvida, Senhor Max?
– Os olhos dele desejavam fazer aquilo e... – hesitou em terminar.
– Max, quero que saiba, nada que falamos sai dessa sala. Não tenha medo em contar-me, pode confiar em mim.
O homem observou o gesto da mulher ao desvia seu olhar pela sala continuou: – Bem, Carlos foi preso por assediar e estuprar um garoto tempos depois, outros se pronunciaram mais tarde – desconfortável ele pausou sua fala. – Talvez eu deva agradecer minha bexiga – riu destruído.
Os dois nada disseram por alguns momentos, então a Mulher perguntou: – Quem era Oliveira, Senhor Max?
– Oh! Oliveira era um garoto homossexual, pergunto-me se ele realmente gostava de garotos ou só fingia? – pegou um cigarro de suas coisas – Posso?
Um leve movimento da Moça pode ser sentido pelos olhos afiados do Homem: – Sim.
Acendeu, tragou analisando sua própria pergunta e continuou: – Eu não sei muito sobre a abordagem que deram nele, estava doente nesse dia e eles nunca comentaram sobre o assunto comigo, era segredo.
– Havia muitos segredos?
– De fato alguns, mas não sei quantos. E pensando nisso, prefiro não saber – sorriu de canto – Voltando a história principal.
“Eu não tinha mais nada para ocupar meu tempo livre, por isso as chacotas e brigas afetaram muito mais todo meu ser. Comecei a esconder-me, dormindo boa parte dos dias até cheguei a estudar! Pode imaginar isso? Um garoto de quinze estudando em seu tempo livre!
De toda forma, minha história e boatos foram esquecidos, recuperei-me dos ferimentos físicos – que deixaram várias cicatrizes e ossos quebrados – batendo de frente com meu demônio, como comentei antes: eu não o conhecia e fico feliz de não ter o encontrado antes. No primeiro momento explodiu em meu interior o desejo de quebrar a cara do Félix, mas que culpa ele tinha?”
– Qual seria a culpa? Nascer lindo ao ponto de apaixonar os adolescente de quatorze?
– Está me dizendo que estava apaixonado por um garoto, Senhor Max?
– Talvez, Doutora – observou os olhos da mesma – A Senhorita vai escutar minha história se eu dizer que “sim”?
– Talvez, o Senhor vai pagar hora extra?
– Um cigarro seria suficiente?
– Não... Mas estou curiosa para saber o que aconteceu.
O homem alcançou um cigarro a mulher e continuou a falar, enquanto acendia o mesmo: – Melhor a respondendo, naquele momento eu não sei o que sentia mas eu sentia algo sem cunho sexual.
– Entendo, algo puro.
– Não sei dizer e recuso-me a pensar podendo estragar o mesmo.
“Conforme aproximava-me do garoto, toda minha raiva e coragem esvaiam-se e eu encontrava minha cabeça cheia do mesmo. Os questionamentos que vieram conforme observei-o antes estavam novamente ali e sem perceber falei: – Por que está só?
Os olhos verdes esmerada olhavam para mim, toda sua atenção era só mim, um estranho. Mesmo assim, ele respondeu a minha pergunta: – Porque ninguém estava aqui comigo.
Eu sorri de canto ao escutar seu comentário maldoso, afinal ele tinha algo além daquela cara de peixe morto. Sentei-me ao seu lado: – Sim, estava.
Ficamos ali por curtos minutos sem dizer uma única palavra, as crianças corriam e gritava a nossa frente. Era um caos externamente e outro internamente, os batimentos e toda a emoção que assombrava meu ser.
– Quem é você?
– Max! Max Carvalho Almeida. E você é Felix, não é?
–Sim. Félix Monte Cruz Almor – sua pausa fui curta e antes que eu falasse, ele continuou – O que você quer?
Ao primeiro momento olhei-o confuso, mas fazia sentido. Se minhas intenções não fossem maldosas, só poderiam ser curiosas.
– Oh! Olha, os balanços estão vazios! Vamos neles? – levantei-me e corri ao brinquedo, chamando seu nome empolgado.
Claramente estava envergonhado, mesmo assim foi se divertir comigo. Tardamos a ir aos nossos quartos dormir, as conversas foram ficando mais longas conforme conhecíamos um ao outro. Contudo, meus sentimentos foram mudando e eu ficava cada vez mais perdido.”
– Era meu melhor amigo e eu estava apaixonado por ele, um jovem não pode entender bem sua primeira paixão e eu não entendi.
– Ele descobriu?
– Só agora – sorriu antes de continuar – Sabe, eu aprendi muito com ele, como atrair uma mulher e tirar dinheiro dela, como conseguir acabar com alguém muito maior que você, como esconder-me dos outros, como fugir de uma prisão, entre outras. Algumas mais prazerosas que outras.
“– Max? – Chamou-me – você tem certeza disso?
– Até parece que importa-se comigo – ri, brincando com meu cumprisse.
– Mas eu sempre me importei. Eu sempre gostei do quando sincero você pode ser com teus pensamentos – suspirou – Queria que mudasse de ideia, deixa que eu vou no seu lugar.
– Parece uma confissão de amor – ri juntando minhas coisas.
– Mas é...”
O homem alevantou-se pela primeira vez desde que entrou no consultório, caminhou observando toda a sala, tirando algumas coisas do lugar e parou a janela.
– Achei tão engraçado terem deixado a janela aberta, como se eu pudesse fugir – olhou a Doutora esperando sua fala.
Esta tirou seus óculos massageando sua têmpora: – Fica mais fácil se você já sabe, podemos ter conversar mais séria agora?
– Podemos.
–Então, vamos começar – vários homens armados apareceram.
–Primeiro – olhou a mulher, afastando-se da janela – Primeiro deixe meu amigo entrar...