A luz fria da manhã adentrava o ônibus pela vidraça riscada e quebradiça, escolhendo categoricamente as pequeninas gotículas de poeira e lhes oferecendo o contorno para que fossem vistas ao bailar no ar. Pessoas exalavam vapor, pessoas dormitavam em seus bancos e pessoas silenciosas lançavam uma saraivada de olhares inóspitos aos poucos falantes do veículo. Era de se esperar que estivesse cheio por estarmos no famoso “horário dos trabalhadores”, mas diria, como um exímio frequentador desse ônibus, que excedera o limite. Nunca peguei um banco, evidentemente, mas podia saborear um tanto generoso de espaço ao ficar de pé. Não era esse o caso naquele dia tão mórbido. Nunca desprezei calor humano, mas como poderia aproveitar dele sentindo-me como uma sardinha? Mexer-me uns passos era pedir por confusão, então tentei ficar o quão confortável minha posição estática permitia. Quando me ajeitei, meus olhos acabaram por pousar sob uma moça. Poucos centímetros nos separavam, então tentar não reparar nela mostrava-se um esforço infrutífero. Reparei nos cabelos longos e escuros como a madrugada de insônia, em como era baixinha e no seu nariz pontudo e afiado. Na maquiagem discreta e nas suas caras roupas sociais, até mesmo em como parecia usar de um grande esforço para passar uma seriedade ao mundo. Nos seus olhos castanhos e reluzentes, grandiosos de maneira que, se olhasse muito a fundo, enxergaria todos os seus segredos. Quando notou que eu a encarava, acabou por corar e desviar seu olhar para baixo. “Vergonha?”, eu pensei, mas afastei essa pretensão. Devia estar cansada por correr para pegar esse ônibus. Se o perdesse, perderia também seu compromisso importante e isso acarretaria problemas. Mesmo assim, continuou a me encarar, como se em uma vingança para minha atitude indelicada. A tensão fora quebrada com um sorriso seu. Não era aqueles animados que mostravam os dentes, na verdade, era bem sutil e acanhado, mas foi o bastante para que eu tivesse uma vontade intensa de corresponder. Pensei em lhe dizer alguma coisa, puxar um assunto banal como comentar o frio repentino que assolou nossa cidade, mas ela foi mais rápida, tossindo para limpar a garganta e me dirigindo mais um de seus sorrisos contidos.
— Moço… — sua voz era quase um sussurro, ainda que doce de se ouvir. — Você está pisando no meu pé. Tipo, há muito tempo. — ela riu baixinho e eu direcionei minha atenção ao chão para obter a confirmação de sua fala.
Me envergonhei, me desculpei, me afastei e prometi que, mesmo que eu tivesse que andar o dobro, mesmo que nunca mais conseguisse ser pontual, jamais pegaria aquele ônibus novamente.