Acho que dias de domingo eram os piores. Todos os dias em que ele aparecia na porta da minha casa eram, mas os domingos sempre me assombravam com mais intensidade. Talvez por acabar esbarrando com ele durante a noite ou talvez por ter que ver a cara dele por mais tempo. Não sei.
“A paz do Senhor, menininha. ” – Só de ouvir aquela voz, a minha espinha tremia. Se eu pudesse, certamente sairia correndo e gritando. Eu não era assim. Nunca fui. Na verdade, eu não conseguia entender de fato a magnitude dos acontecimentos no começo de tudo. Aquele homem despertava a minha curiosidade e tentava me comprar com guloseimas.
Não lembro como tudo começou. Eu sei que ele era da mesma igreja que a minha família e que trabalhava como encanador. Por conta da amizade que fez com os meus pais, com todos da igreja, ele sempre aparecia lá em casa para concertar um cano quebrado ou estudar a palavra ou simplesmente comer alguma coisa.... Era assim no começo.
Cada viagem, um novo doce, um novo mimo. Meu pai notou que ele gostava de crianças e a minha mãe parecia satisfeita. Não é sempre que se encontra pessoas de confiança, sabe? Quem veria o mau em um homem evangélico, de meia idade, que sempre estava brincando com as crianças? Como ele poderia ser uma pessoa ruim? Como? Como.....? Confiança é algo que se conquista e se tinha alguém que inspirava toda e qualquer confiança, certamente era o psicopata que atendia pelo nome de Emerson.
Minha memória nunca foi boa, então não sei como aconteceu exatamente. Eu lembro de ficar sozinha com ele por alguns minutos. Aquela foi a primeira vez. A primeira de tantas outras. Ele tinha umas brincadeiras estranhas. Passei um bom tempo para descobrir o que ele tinha dentro do bolso da frente. Ele gostava de cheirar coisas que não deveriam ser cheiradas. Eu não entendia o motivo de só brincarmos quando não tinha ninguém. Eu apenas queria ganhar os doces.... Seria melhor ter desistido. Eu era uma criança muito curiosa e completamente inerte aos perigos do mundo real.
Foi quando meus pais pediram para ele me pegar na igreja – alguma festa de crianças e adolesceste que teve – que eu passei a entender melhor toda a situação. Todos morávamos perto. Ele me falou que tinha esquecido os doces em casa e que me levaria até lá, antes de me levar para casa. Eu queria doces, ele queria mel.
Foi assustador. Não sei o que aconteceu ao certo, mas foi assustador. Lembro de ouvir ele dizer que eu não deveria contar nada para ninguém, ou ele iria fazer coisas ruins com a mamãe. Eu calei. Voltei para casa. Meus pais ouviram que eu quase fui atropelada. Eles acreditaram que o irmão tentou me salvar. Eles acreditaram que eu estava em choque pelo quase acidente envolvendo um carro. Eles acreditaram nas santas palavras do abençoado irmão Emerson.
O meu monstro não se escondia debaixo da cama. Ele estava ao meu lado, escondendo-se na sombra de um templo sagrado.
~~x~~
Os dias passaram e eu voltei a ser uma criança normal, mas eu não era mais uma criança. Não poderia mais ser. As bonecas me assustavam. O escuro me dava arrepios. E os meus pais, eles apenas acharam que era uma fase, que logo passaria.
Não havia nenhum monstro dentro do meu armário, nenhuma árvore velha passava seus galhos na minha janela, a luz estava bem viva, mas a tempestade dentro de mim acontecia sempre que a hora de dormir chegava. Eu gritava. Chorava. Eu sofria. Papai dizia que era por conta do quase acidente e mamãe acreditava que algum espírito maligno estava perto de mim. Havia alguém maligno, realmente, mas não era espírito nenhum.
Emerson sempre me visitava e ficava sozinho comigo no meu quarto. Ele, por ser próximo e de confiança, foi escolhido por meus pais para tentar me ajudar a passar pelo trauma. Acharam que seria mais fácil se o meu salvador passasse algum tempo a sós comigo, para me consolar. Quando se olha perto demais, acaba perdendo o que realmente está acontecendo.
Eu estava rodeada de pessoas da igreja, mas me sentia no inferno. E vivi assim por seis meses. Seis meses em que Emerson me visitou todos os dias e passou pelo menos uma hora trancado comigo no quarto, orando. Meus pais não entendiam o motivo de eu continuar apática. Em algum momento daquela minha vida de torturas, eles decidiram que as palavras do Senhor não poderiam me alcançar e decidiram me levar em um hospital, para tentar descobrir o motivo de eu estar definhando.
Seis meses, para finalmente me libertar. Emerson descobriu que estávamos indo ao hospital e tentou convencer meus pais do contrário, pois ele sabia o que os médicos iriam dizer. Pela primeira vez os meus pais não ouviram o que ele dizia. Seis meses. Seis longos e cansativos meses se passaram.
Os médicos logo chegaram a conclusão mais óbvia, mas os meus pais não aceitaram e me levaram para outro lugar, que também deu o mesmo veredicto. Minha mãe desmaiou e meu pai precisou ser forte, mais forte do que eu. Ele precisou descobrir, sozinho, quem era o responsável e ele descobriu, mas foi tarde. Emerson já havia saído da cidade, do país, talvez. Não tínhamos fotos e não sabíamos sobrenomes. Talvez o nome dele nem fosse Emerson.
O meu monstro havia, finalmente, perdido uma batalha. Talvez ele ainda esteja travando guerras santas em algum lugar do mundo, mas não seria na igreja que a minha família frequentava, não seria mais comigo.
Eu prefiro acreditar que ele morreu de uma forma bem trágica. Esmagado por um elefante; comigo por um crocodilo; morrido afogado; explodido; envenenado lentamente; trucidado; sufocado; torturado; canibalizado vivo; esfolado; desmembrado; apodrecido; violentado física e psicologicamente. Eu espero, do fundo do coração, que ele esteja no inferno santo que criou, sendo atormentando por demônios vingativos que vão revivê-lo só para acabar com ele de forma mais cruel que a anterior.
Eu acredito/anseio por isso, pois, só assim eu posso deitar a cabeça no travesseiro e sonhar. Afinal, o meu monstro não está mais aqui, então eu preciso me tornar um para poder sobreviver feliz.