O meu monstro
Yvi
Tipo: Conto ou Crônica
Postado: 20/08/20 00:37
Editado: 17/04/21 13:59
Avaliação: 10
Tempo de Leitura: 6min a 8min
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Palavras: 1035
Não recomendado para menores de dezoito anos
Notas de Cabeçalho

AVISO: É um texto muito pesado, então, se você é sensível de alguma forma, não prossiga a leitura. Dê uma olhada nas tags antes de pensar em ler, por favor.

Capítulo Único O meu monstro

Acho que dias de domingo eram os piores. Todos os dias em que ele aparecia na porta da minha casa eram, mas os domingos sempre me assombravam com mais intensidade. Talvez por acabar esbarrando com ele durante a noite ou talvez por ter que ver a cara dele por mais tempo. Não sei.

A paz do Senhor, menininha. ” – Só de ouvir aquela voz, a minha espinha tremia. Se eu pudesse, certamente sairia correndo e gritando. Eu não era assim. Nunca fui. Na verdade, eu não conseguia entender de fato a magnitude dos acontecimentos no começo de tudo. Aquele homem despertava a minha curiosidade e tentava me comprar com guloseimas.

Não lembro como tudo começou. Eu sei que ele era da mesma igreja que a minha família e que trabalhava como encanador. Por conta da amizade que fez com os meus pais, com todos da igreja, ele sempre aparecia lá em casa para concertar um cano quebrado ou estudar a palavra ou simplesmente comer alguma coisa.... Era assim no começo.

Cada viagem, um novo doce, um novo mimo. Meu pai notou que ele gostava de crianças e a minha mãe parecia satisfeita. Não é sempre que se encontra pessoas de confiança, sabe? Quem veria o mau em um homem evangélico, de meia idade, que sempre estava brincando com as crianças? Como ele poderia ser uma pessoa ruim? Como? Como.....? Confiança é algo que se conquista e se tinha alguém que inspirava toda e qualquer confiança, certamente era o psicopata que atendia pelo nome de Emerson.

Minha memória nunca foi boa, então não sei como aconteceu exatamente. Eu lembro de ficar sozinha com ele por alguns minutos. Aquela foi a primeira vez. A primeira de tantas outras. Ele tinha umas brincadeiras estranhas. Passei um bom tempo para descobrir o que ele tinha dentro do bolso da frente. Ele gostava de cheirar coisas que não deveriam ser cheiradas. Eu não entendia o motivo de só brincarmos quando não tinha ninguém. Eu apenas queria ganhar os doces.... Seria melhor ter desistido. Eu era uma criança muito curiosa e completamente inerte aos perigos do mundo real.

Foi quando meus pais pediram para ele me pegar na igreja – alguma festa de crianças e adolesceste que teve – que eu passei a entender melhor toda a situação. Todos morávamos perto. Ele me falou que tinha esquecido os doces em casa e que me levaria até lá, antes de me levar para casa. Eu queria doces, ele queria mel.

Foi assustador. Não sei o que aconteceu ao certo, mas foi assustador. Lembro de ouvir ele dizer que eu não deveria contar nada para ninguém, ou ele iria fazer coisas ruins com a mamãe. Eu calei. Voltei para casa. Meus pais ouviram que eu quase fui atropelada. Eles acreditaram que o irmão tentou me salvar. Eles acreditaram que eu estava em choque pelo quase acidente envolvendo um carro. Eles acreditaram nas santas palavras do abençoado irmão Emerson.

O meu monstro não se escondia debaixo da cama. Ele estava ao meu lado, escondendo-se na sombra de um templo sagrado.

~~x~~

Os dias passaram e eu voltei a ser uma criança normal, mas eu não era mais uma criança. Não poderia mais ser. As bonecas me assustavam. O escuro me dava arrepios. E os meus pais, eles apenas acharam que era uma fase, que logo passaria.

Não havia nenhum monstro dentro do meu armário, nenhuma árvore velha passava seus galhos na minha janela, a luz estava bem viva, mas a tempestade dentro de mim acontecia sempre que a hora de dormir chegava. Eu gritava. Chorava. Eu sofria. Papai dizia que era por conta do quase acidente e mamãe acreditava que algum espírito maligno estava perto de mim. Havia alguém maligno, realmente, mas não era espírito nenhum.

Emerson sempre me visitava e ficava sozinho comigo no meu quarto. Ele, por ser próximo e de confiança, foi escolhido por meus pais para tentar me ajudar a passar pelo trauma. Acharam que seria mais fácil se o meu salvador passasse algum tempo a sós comigo, para me consolar. Quando se olha perto demais, acaba perdendo o que realmente está acontecendo.

Eu estava rodeada de pessoas da igreja, mas me sentia no inferno. E vivi assim por seis meses. Seis meses em que Emerson me visitou todos os dias e passou pelo menos uma hora trancado comigo no quarto, orando. Meus pais não entendiam o motivo de eu continuar apática. Em algum momento daquela minha vida de torturas, eles decidiram que as palavras do Senhor não poderiam me alcançar e decidiram me levar em um hospital, para tentar descobrir o motivo de eu estar definhando.

Seis meses, para finalmente me libertar. Emerson descobriu que estávamos indo ao hospital e tentou convencer meus pais do contrário, pois ele sabia o que os médicos iriam dizer. Pela primeira vez os meus pais não ouviram o que ele dizia. Seis meses. Seis longos e cansativos meses se passaram.

Os médicos logo chegaram a conclusão mais óbvia, mas os meus pais não aceitaram e me levaram para outro lugar, que também deu o mesmo veredicto. Minha mãe desmaiou e meu pai precisou ser forte, mais forte do que eu. Ele precisou descobrir, sozinho, quem era o responsável e ele descobriu, mas foi tarde. Emerson já havia saído da cidade, do país, talvez. Não tínhamos fotos e não sabíamos sobrenomes. Talvez o nome dele nem fosse Emerson.

O meu monstro havia, finalmente, perdido uma batalha. Talvez ele ainda esteja travando guerras santas em algum lugar do mundo, mas não seria na igreja que a minha família frequentava, não seria mais comigo.

Eu prefiro acreditar que ele morreu de uma forma bem trágica. Esmagado por um elefante; comigo por um crocodilo; morrido afogado; explodido; envenenado lentamente; trucidado; sufocado; torturado; canibalizado vivo; esfolado; desmembrado; apodrecido; violentado física e psicologicamente. Eu espero, do fundo do coração, que ele esteja no inferno santo que criou, sendo atormentando por demônios vingativos que vão revivê-lo só para acabar com ele de forma mais cruel que a anterior.

Eu acredito/anseio por isso, pois, só assim eu posso deitar a cabeça no travesseiro e sonhar. Afinal, o meu monstro não está mais aqui, então eu preciso me tornar um para poder sobreviver feliz.

❖❖❖
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Postado 11/09/20 00:22

Espero do fundo do meu coração que isso jamais tenha acontecido com você... Aconteceu comigo e eu nem pude sentir o baque que os outros levaram ao ler, pois essa história ainda se repete na minha memória todos os dias... É sempre um cara legal demais pra ser verdade, amigo de todo mundo, olhos azuis, sorriso largo, bom de papo, ama dar doces, ama conhecer mais do nosso mundinho singular, afinal ele ama crianças! Trabalha com crianças... Estupra crianças...

Me senti lendo minha própria história, por mais que a minha seja diferente disto... Como disseram acima, este é o seu pior-melhor texto... Muito bem escrito, sofrido, profundo, nu, cheirando a dor, a sangue a paralisia...

A gente vira mesmo um monstro pra aprender a lidar com isso, meu monstro ainda me sufoca, enquanto ele... Deve estar morrendo de câncer uma hora dessas, a vingança que me cabe...

Enfim, sem mais delongas e desabafos, te agradeço por este texto que DEVERIA estar em uma cartilha sobre abuso sexual e ser distribuído nas escolas!!!

Obrigada Yvi, por sempre ser certeira.

Postado 20/08/20 15:18

Apesar de ter lido esse texto antes de você postá-lo, continuo sem estruturas para aguentar essa leitura densa e conturbada. Talvez ninguém esteja pronto, afinal não é um assunto que pode ser digerido com facilidade, mas é necessário falar sobre.

A idealização de bem e mal sempre foi muito relativa. Desde o início dos tempos, quando essa pauta era levantada, muito se dizia acerca do que verdadeiramente poderia significar essa duas palavrinhas que não poderiam ser apenas aquilo que demonstravam. Às vezes o bem vem vestido de mal, mas muitas vezes o mal vem nas vestes do bem e é aí que mora toda a ironia da discussão. Seu texto consegue abordar tal perspectiva dentro de uma situação que acontece diariamente com diversas crianças. Negar o acontecimento da pedofilia equivale ao mesmo que calar as diversas crianças traumatizadas eternamente e menosprezar o sofrimento delas.

O mal pode ser aquele marido tóxico, aquela amizade que te coloca para baixo, aquela brincadeira que na verdade é bullying, aquele passada de mão sem querer que é assério, aquele irmão da igreja que ama crianças mas que na verdade é um pedófilo. São tantas as possibilidades de mal difarçadas de bem que jamais conseguiria enumerá-las aqui. Nem seria necessário, pois o seu texto consegue transmitir e desenvolver com perfeição exatamente essa ideia.

Com uma narração dura e completamente árdua, a pequena protagonista consegue gerar um misto de ódio e tormento no leitor. Não é uma leitura fácil, principalmente porque estamos descobrindo a profundidade desse crime juntamente com a garotinha e, mesmo sabendo logo no início do texto do se trata, está além das capacidades do leitor de agir - o que vai contra todo e qualquer instinto humano. A cada nova descrição de momentos em que ele agia, as palavras consomem de nojo e horror o leitor.

Os pais dessa criança são ainda mais culpados. Se eles falassem sobre, explicassem para ela que ninguém pode tocá-la sem que ela queira isso, mostrassem como o corpo dela funciona e, acima de tudo, notassem os muitos sinais que ela deu... nada disso teria acontecido. Esse trauma eterno não teria ocorrido com a filhinha amada e querida deles. Falar sobre educação sexual não é pecado, mas é pecado agir como um religioso escroto e cego que acha que tudo isso é blasfêmia contra a infância. Sabe o que é blasfêmia contra a infância, meu querido? Não ensinar à criança sobre como o corpo dela funciona e que ninguém tem o direito de tocá-la para que, por meio disso, ela entenda que está sendo abusada quando algo similar a situação do texto aconteça e possa pedir ajuda.

O final do texto não é um alívio, pois a menininha continuará traumatizada. Deus não livra ninguém de abuso sexual e esse texto é a prova viva disso, afinal foi algo que veio de dentro da igreja, não? Até quando as pessoas vão continuar com essa hipocrisia cega de que santidade tem a ver com castidade? As nossas crianças precisam ser educadas sexualmente, também! Não é um ato de contaminação da alma, mas, sim, um ato de amor e cuidado para evitar que situações como as do texto se repitam.

Obrigada por compartilhar conosco esse texto! Ele é necessário em cada detalhe que possui.

Parabéns, mil vezes, Flavinha ♥

Postado 26/08/20 19:39

Agradeço muito pelo comentário. <3

Postado 20/08/20 16:47 Editado 20/08/20 16:50

Esse foi o texto mais real, mais horrível e mais monstruoso que já li em minha vida. A realidade aqui apresentada é realmente nauseante e revoltante. Mas ainda assim, é um assunto de extrema necessidade em ser mostrado, exatamente assim, em sua faceta mais cruel.

Eu fico tão revoltada com essas coisas, de as pessoas acharem que só porque alguém é da igreja ele é do bem, porque só "cidadãos de bem" frequentam a igreja e tem Deus no coração. Ah vai tomar no olho do cu, pensamento ridículo do caralho. A maldade está em todo lugar, e diga-se de passagem, principalmente dentro da igreja.

Na faculdade eu assisti a um mini-curso ministrado por uma enfermeira forense, chefe do departamente de violência sexual do Hospital das Clínicas da USP, e foi o maior desgosto da minha vida, ter ali na minha frente aquelas informações, aqueles dados de que em primeiro lugar É O PAI E É A MÃE que são os principais estupradores. Em segundo lugar entra o padrasto e madrasta, junto com irmãos mais velhos. Em terceiro lugar entra os vizinhos, amigos próximos da família, e outros familiares como tios e primos.

Essas informações são completamente revoltantes. O PERIGO ESTÁ SEMPRE MAIS PRÓXIMO DO QUE IMAGINAMOS. Às vezes eu chego a odiar a humanidade, porque acho que somos podres e corrompidos. Completamente nojentos.

E outro dado, revoltante, que a enfermeira forense nos forneceu é de que a grande maioria dos estupradores não é de fato pedófilo. Pois pedófilo é aquele que se sente atraído sexualmente pelas crianças, mas essa pessoa pode nunca vir a dar vasão aos seus desejos. E eu achei isso muito revoltante, sabe, porque nesses mais de 80% dos casos, são adultos "sexualmente normais" (não-pedófilos) que estupram seus próprios filhos só por força da ocasião (CARALHO) (isso tem um nome, mas eu esqueci... só que é igual aquela frase "a ocasião faz o ladrão"). Isso é tão nojento que eu chego a borbulhar de ódio por dentro. Isso é repugnante.

Concordo plenamente com todas as palavras da Sabrina, educação sexual é o maior ato de amor que você pode oferecer a uma criança. As crianças precisam de armas para lutar contra esses monstros asquerosos que as cercam de todos os lados. A vida é muito cruel, muito injusta e muito nojenta...

Mas obrigada, Flávia, por ter escrito esse texto tão (infelizmente) pautado na realidade. É sempre bom ter material assim para causar indignação e revolta nos leitores.

Obrigada, Flávia <3 <3 <3

Postado 26/08/20 19:38

São fatos realmente chocantes e repugnantes.

Muito obrigada. <3

Postado 20/08/20 20:43 Editado 26/08/20 19:51

Posto tudo o que foi sincera e intensamente postado nos comentários anteriores, não tenho nada a acrescentar, somente a concordar e a lamentar...

Este sem dúvida foi um dos seus melhores e piores textos, Moça. E eu te parabenizo por isso de todo o meu enojado e indignado coração.

Atenciosamente, um ser que pelo visto nunca vai parar de se surpreender tanto com a autora quanto com as monstruosidades que ela é capaz de abordar, Diablair.

Postado 26/08/20 19:36

Eu agredeço de coração, Moço.

Postado 26/08/20 11:23

Nossa, isso foi muito pesado, muito pesado mesmo. É muito triste uma situação dessas, e são tantas crianças que sofrem, e o mundo parece ficar calado. Essa história de ser bonzinho só pq vai na igreja é a maior furada mesmo. Foi pesado mas foi muito importante mesmo vc tratar desse assunto. Então Parabéns pelo texto viu.

Postado 26/08/20 19:35

As pessoas parecem fechar os olhos, de certa forma.

Obrigada! <3

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