A poeira da estrada fazia-me querer espirrar, mas a aguentei corajosamente, esperando a deixa perfeita para fechar meu vidro sem que ele visse. Podia simplesmente pedir, mas eu não aguentaria tamanha troça. Mário adorava chamar-me de patricinha, gritar aos quatro cantos o quanto eu era fresca e mimada. O quanto eu era privilegiada por meus problemas de verdade não passarem de poeira que o vento da estrada carregaria para longe. Não lhe oferecerei esse gostinho. Não hoje.
Quando me chamara, audacioso como só ele é capaz de ser, ponderei seriamente em não atender seu pedido. Lhe responder com o típico "talvez outra hora" e jantar em casa, em meio aos eventuais atritos vividos por meus pais, escutando a noite toda o quanto eu era diferente da "juventude perdida" que meu pai tanto hostilizara.
Suspirei, como frequentemente eu vinha fazendo.
Por que eu ligo tanto para a tal aprovação? Se eu jogar na balança, escutar um "boa garota" não compensa uma vida inteira de experiências perdidas.
Pensando nisso, embora o olhar temeroso que o papai me lançara quando lhe pedi diminuísse consideravelmente minha determinação, resolvi aceitar o convite daquele garoto tão ousado. Ele era um garoto alto, de ombros largos e pele escura como azeviche. Tinha cabelos desgrenhados, de um tom castanho opaco que combinava com os olhos expressivos. Já me atirara cantadas aos montes, que eu me limitava a debochar ou ignorar, mas, ao passar um mês, ele decidira tomar a inciativa.
— Posso colocar alguma coisa no rádio? — lhe perguntei, embora tenha soado mais formal do que eu gostaria. De todo modo, ele assentiu, então tive a oportunidade de percorrer pelas estações de rádio. Algumas falhavam, talvez por já termos nos distanciado da cidade, e outras não passavam de sermões de teor religioso. Não que eu desprezasse a religião, até mesmo gosto de ir à igreja uma vez por semana, mas odeio a forma como certos pastores nos atiram broncas banalmente. Quando encontrei uma música que agradasse a garota caprichosa que eu sou (era Garota de Ipanema do Tom Jobim, por sorte uma das minhas músicas favoritas), não pude evitar o impulso de dançar. Diria até que fora algo involuntário. Quando vi que ele me encarava, não pude deixar de sentir-me envergonhada. — Que foi? Acha muito estranho eu me animar com bossa-nova?
Ele riu, debochadamente, como se a minha preocupação fosse a piada mais engraçada que já ouvira.
— Não, não. Tipo, eu não sou do tipo que dança, mas curto pra caralho quando fazem. — pareceu-me muito uma desculpa, mas resolvi perdoá-lo. Sempre me dizem que eu devo parar de tornar uma tempestade as coisas que não passam de uma garoa banal.
— Até quando não fazem bem? — lhe atirei esse questionamento, debochada. Embora eu me esforce para contê-las, as piadas autodepreciativas simplesmente escapam da minha boca. Eu tenho que parar com essa merda.
— É melhor ainda quando não fazem bem.
Lhe atirei um sorriso, que fora correspondido pelo garoto, e decidi deixar-me ser carregada pela música. Penso agora, estando tão longe casa, que não fora uma boa ideia aceitar seu convite. Não nos conhecemos, tampouco temos assuntos interessantes para oferecer um ao outro. Sendo assim, por que estou aqui?
Eu abomino o silêncio e não suporto a falta de diálogo num encontro. Poxa! O intuito não era conversar?
Notando meu claro desconforto, ele me oferecera um sorriso confortante. Na sua cabeça, também deve ter percebido o quanto aquilo tudo não passava de um erro bobo. Mesmo assim, agraciei seu gesto. Ele até diminuíra a velocidade do carro.
Como num estalo, lembrei-me de algo que poderia melhorar consideravelmente o encontro. Apalpo cegamente por debaixo do meu banco até que finalmente a encontrei. O coitadinho usara seus poucos trocados para me comprar uma garrafa de Pepsi. Achei um gesto meigo, de uma delicadeza que não se espera de alguém que se vende como bruto. Embora eu deva confessar que, quando ele me oferecera a tal da garrafa, soara um pouco como aqueles caras que pagam as coisas para as garotas por acharem natural. Não por gentileza ou algo que o valha, apenas porque é a função a qual são submetidos. Isso me é um pouco deprimente.
— Sabe, achei esse um presente muito fofo. De verdade. Mas eu não consigo mesmo tomar tudo. Se quiser um gole generoso, não hesite em dá-lo.
O olhar que ele me mostrou parecia uma mistura entre pena e a certeza de que eu continuaria sendo essa patricinha para sempre. Isso me deixou um pouco magoada (não que fosse realmente uma mentira), mas fiquei questão de disfarçar.
— Tá acostumada com bebidas mais fortes, garota?
Como eu detesto isso! Sério. Odeio esse olhar de "Seu papai te deixa mesmo beber?". Bom, a resposta é um não, mas, pelo menos, o papai não é um devasso declarado como o pai dele. E não seria capaz de encostar um dedinho sequer na mamãe.
— Ah, quem me dera. Consigo dar umas escapadas e beber um corote de vez em quando, mas, se o papai descobrisse, eu estaria ferrada. De verdade. E o pior é que o velho tem uma adega. Tipo, eu posso escutá-lo falar sobre a composição da cerveja até ele se dar ao luxo de cansar, mas experimentar? Parece que estou cometendo um pecado. Detesto isso.
Por algum motivo, acabei me abrindo para ele (e não do jeito que ele esperava, eu suponho). Apesar de ser debochado em demasia, ele é um cara meio caladão. Esse é o melhor ouvinte, aquele que não te questiona e lhe oferece o máximo de sua atenção. Na verdade, eu sou bem falante, então, vez ou outra no colégio, deixo minhas amigas um pouco de lado para bater um papinho com o pessoal mais tímido. É bom não ter que disputar o controle da conversa de vez em quando.
— Até acho normal um pai ser protetor em relação a sua filha, mas ele exagera um pouco.
— Um pouco? — não me orgulho, mas soei nojenta com a risada que dei. Esse tópico sempre me deixava um pouco alterada. — Eu já o acho um ditador. Você que tem sorte. Do pouco que escutei do seu pai, ele parece ser incrível. — assustadoramente incrível, eu queria dizer, mas me contive por ser um tópico meio delicado.
— Não sei se incrível seria a melhor maneira para definir meu velho. Tipo, ele me trata mais como um parceiro de farra do que como um filho. Deve parecer divertido, mas as vezes faz falta uma bronca.
— Poxa. Confesso que fiquei surpresa.
— Com o quê?
— Você é bem mais autoconsciente do que eu esperava. Que tipo de adolescente pede por broncas?
— Sei lá. Talvez se o meu pai fosse chato como o seu, eu não falasse coisas assim. Mas agora é isso que eu penso. Afinal, minha velha foi embora por causa dele.
Sem escolha, mantivesse o silêncio. Até uma idiota como eu consegue fazer isso.
É sempre assim comigo. Quando menos espero, quando estou com a guarda baixa e mais do que disposta a ligar-me a outra pessoa, acabo falando uma merda dessas. Claro, Elisa, nada mais pertinente do que falar da falecida mãe dele no primeiro encontro.
Ainda embaraçada, estico a garrafa de refrigerante para ele. Demorou para entender oque eu queria fazendo isso, mas acabou aceitando. Não precisou parar o carro para agarrar a garrafa e tomar um gole de Pepsi. É quase como se o carro fosse parte dele.
Fecho meus olhos, sendo ninada pelos solavancos que o carro fazia ao chocar-se com os buracos da estrada irregular. Lentamente, abro meus olhos, dando de cara com diversas casas de madeira. Eram pequenas e sem terreno, mas de longe, quando o carro avançava e as deixava para trás, tornavam-se apenas casas. Como qualquer outra.
Enquanto olhava pela janela, acabei por pensar no motivo dele acelerar tanto. O que ele quer deixar para trás? E eu, por que aceitei vir com ele?
O que eu quero deixar para trás?
— Quando você acelera, seus problemas ficam para trás junto das casas?
Não sei direito porque falei, mas eu não podia conter mais essa pergunta.
— Acho que sim. — por um curto instante, tive medo que ele parece por aí, mas não foi o caso. — Eu estava mesmo pensando em extravasar. Como imaginei que você ia curtir a ideia, resolvi te chamar.
— É, eu gostei um bocadinho. — deixei que a minha cabeça caísse no braço direito, por sua vez apoiado na janela. Finalmente sentia-me relaxada e não no carro de um estranho apenas para afrontar as estúpidas ordens do meu pai. — Mas você pode me dizer o motivo de ter me escolhido?
— Não foi bem uma escolha. Eu só pensei que você ia curtir. Acho que bateu uma conexão. Sei lá.
Afinal, você não é um cara complicado, certo?
— Uma conexão. Humm... — antes que ele pudesse raciocinar, beijo-lhe na bochecha, mais carinhosa do que romântica. Acho que seria injusto para ambos se rolasse alguma coisa de fato. — De certa forma, acho que me sinto igual. Podemos continuar aqui o tempo que você quiser.
Aprendi, ainda não sei como, a amar ficar naquele carro. Não preocupar-se com a pressão do dia a dia e viver sendo ninada pelos buracos que atingiam o pneu. É estranho que eu sinta que não fosse me opor a nenhuma sugestão dele agora. A noite trazia consigo um vento chuvoso, apesar de o mesmo ser um pouco carregado da areia vinda dessa estrada.
— Vamos voltar. Preciso falar com o meu pai. — em resposta, eu sorri. Em seguida, demos meia volta, indo de encontro com as casas que abandonamos no caminho.