Aquelas almas não estavam destinadas a ficar juntas. Simples assim.
Esse era o mal do ser humano, ficar forçando as coisas que não foram profetizadas em seu destino para acontecer. A tentativa de mudança sempre acabaria falha...
Eram os anos 60, Marina era uma menina de 14 anos quando o viu pela primeira vez. Foi depois de um acidente, ela atravessou a rua sem olhar e o carro quase a matou. Ficou internada por meses no hospital, sua família era muito ocupada, por isso quase não a visitava. Ficaria sozinha, se não fosse por um menino, que ia vê-la todos os dias.
Ele era muito misterioso, sentava-se ao lado de sua cama e apenas sorria, sem falar uma única palavra. Os dias e as semanas foram passando, e a cada dia o menino se aproximava mais. Pegava em sua mão, lhe fazia carinho, e sorria gentilmente.
Diante de tanta compaixão, Marina foi pouco a pouco se apaixonando por esse menino de quem nunca havia ouvido a voz. E então, mesmo sem receber respostas, fazia longos discursos, contava sobre suas coisas favoritas, suas alegrias e sobre suas tristezas e angústias.
Depois que saiu do hospital, o menino ia visitá-la em sua casa, quando os pais não estavam. Mas ele continuava sem falar, e quanto mais o tempo passava, mais ele mantinha distância corporal.
Estavam apaixonados, e Marina não entendia essa reação dele, de nunca aproximar o corpo do dela. Nem mesmo seu nome ele havia lhe contado, apenas escreveu que se chamava Fer, e nenhum detalhe a mais.
Fer era uma pessoa que já nasceu rodeada por espíritos, que desde criança deram-lhe visões de suas vidas passadas. E por esse motivo Fer se tornou uma criança triste, atormentada por suas desolações em outras vidas.
Aquela menina, Marina, era seu maior motivo de tormenta e angústia. E o que mais atormentava Fer, era o fato de que mesmo agora, não poderia ser feliz com Marina.
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Se passaram anos, até que um dia os pais de Marina descobriram as visitas do menino. Foi um alvoroço horrível, o pai bateu no menino até quase o matar. Para logo em seguida partir para cima de sua própria filha, gritando que não aceitaria filha desonrada em casa.
Fer não acreditava na brutalidade do homem. E para defender sua amada Marina, finalmente, depois de tantos anos, abriu a boca para gritar, e contar a todos o seu segredo.
Fer se chamava Fernanda, era uma menina.
Todos ali presentes entraram em choque, a mãe correu socorrer Fernanda, e brigou com o marido que havia batido daquela forma horrível em uma simples menina que era apenas amiga de sua filha.
Fernanda foi para o hospital. E Marina então foi visitá-la todos os dias. Pouco a pouco, dia após dia, Fernanda, mesmo ainda fraca, ia contando sua história.
Contou que suas almas já habitaram diversos corpos, masculinos e femininos, mas que em todas as vidas em que tentaram ficar juntas, ocorreram tragédias e sofrimentos para impedir o amor.
Marina se emocionava muito com toda a carga emocional, e prometeu a Fernanda que não importava como, elas iriam ficar juntas, pois o fato de ambas serem meninas não mudava em nada o amor que sentiam.
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Partilharam momentos felizes, trocaram beijos apaixonados, se abraçaram muito, e se entregaram uma a outra em momentos de amor. Mas tudo sempre escondido, fugindo e se escondendo de um mundo que as chamaria de aberrações.
Elas não sabiam que antes da tormenta, é que vem a calmaria. Pois nunca se pode fugir do destino. Cada alma tem seu destino profetizado, e não é possível fugir disso. Aquelas duas tristes almas não estavam destinadas a ficar juntas. E a felicidade das moças apaixonadas durou muito pouco, na verdade alguns anos, mas muito pouco comparado com toda a vida que elas poderiam ter tido juntas. Claro, se suas almas fossem destinadas, e se fossem outros tempos, para elas poderem mostrar seu amor ao mundo, sem julgamentos e preconceitos.
Quando a mãe de Marina chegou de surpresa em certo dia, pegou as duas jovens mulheres se beijando luxuriosamente, enroladas na cama, gemendo com o prazer. A mulher entrou em choque e desespero, fez um escarcéu e começou a quebrar tudo.
Disse coisas horríveis, que devia ter deixado o marido a matar quando teve a oportunidade anos atrás. Mas que agora ela não iria suportar a vergonha de uma filha que fazia atos tão asquerosos.
Pegou enfeites de vidro de cima da prateleira e começou a jogar nelas, ensandecida. Gritava que Deus jamais iria perdoar esse tipo de atrocidade, e que as duas iriam queimar no inferno.
Elas tentaram se defender, mas a mãe tinha a força do ódio, implantada por uma sociedade homofóbica. Quando ela tentou acertar Marina com um caco de vidro, Fernanda se entrepôs e a luta corpórea a levou junto com a mãe até a sacada do quarto, no décimo andar, de onde caíram e morreram.
Marina gritou até sua voz não sair mais, e chorou até não conseguir mais produzir lágrimas. Ela não conseguia suportar a ideia de que o destino tinha que ser assim. Inocente, sem entender que suas almas nunca poderiam encontrar felicidade juntas, pois não estavam destinadas uma a outra na profecia da vida, ela pensou ingenuamente que definitivamente iria encontrar um modo de amar Fernanda.
Pensou que ela definitivamente iria encontrar a sua amada novamente, não importando se fosse no corpo de homem ou mulher, Marina ia encontrá-la na próxima vida e amá-la. E foi com esse pensamento que, com o caco de vidro, cortou profundamente seu pulso, se jogando da sacada logo em seguida, para morrer no solo ao lado de Fernanda.