Diário da Menina que Só Escreve à Noite (Em Andamento)
Larissa M.
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Tipo: Romance ou Novela
Postado: 23/02/20 01:38
Editado: 05/03/20 02:05
Qtd. de Capítulos: 4
Cap. Postado: 23/02/20 01:38
Avaliação: 10
Tempo de Leitura: 14min a 18min
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Palavras: 2255
Não recomendado para menores de dezoito anos
Diário da Menina que Só Escreve à Noite
Capítulo 1 Coisas que Só Acontecem à Noite

Eu costumava sonhar, noite após noite, com uma cidade abandonada. Percorria suas ruas desertas, de pés descalços, pisando a poeira de anos. Quando via uma casa, o que era raro, a natureza havia tomado conta de tudo, como a fruta dentro da casca, fazendo ruir paredes, portas e janelas. Os animais selvagens bebiam água de chuva no que restara da sala de estar ou do quarto de um neném, alheios ao que existira ali antes deles. Nos meus sonhos, de tanto caminhar, eu perdia as unhas dos pés, uma por uma, e meus dedos ficavam em carne viva, tintos de sangue, como devem ter ficado os pés de Cristo na cruz, os católicos que me perdoem a comparação. Geralmente a longa caminhada me levava até o mar. A praia estava repleta de cadáveres insepultos, deitados na areia, todos nus, com os pulmões cheios de água salgada, sem ninguém para chorar por eles. Eu reconheço alguns mortos, outros não. É como se a humanidade toda coubesse naquela praia.

Eu me deito na areia - a única pessoa viva entre os mortos - e espero algo de terrível me acontecer, a mesma doença que contaminou todos os outros, a dor que deu fim à humanidade, coisa que nem mesmo a bomba conseguiu. Nada faz o meu coração parar. Sigo respirando o ar salgado da praia. A espera pelo fim é insuportável. Ao longe, os cavalos correm livres pela orla do fim do mundo. E eu penso pela primeira vez que, num mundo livre dos homens, fosse eu a única sobrevivente, ninguém veria com maus olhos se eu tivesse filhos com os cavalos. Num mundo sem homens, nada mais seria proibido. Num mundo sem homens, eu não sentiria vergonha do meu cheiro ou do meu desejo. O sonho acaba por aí - porque nem a utopia é capaz de produzir o milagre de um mundo sem homens - talvez só mesmo a bomba. Eu acordo molhada entre as pernas, molhada de água do mar. Ao sair à rua, para ir ao colégio ou comprar qualquer coisa de casa, as pessoas me olham sem saber que eu tenho um segredo em mim.

Quando fiz 15 anos, eu tinha vergonha dos meus pés. Eram os pés de uma menina, nus, pequenos, sem cor, no corpo da mulher adulta que eu queria começar a ser. Eu era virgem, naquela época. Algo que, nos pés, tentava disfarçar pintando as unhas de vermelho. O feminino era uma ideia tão vaga para mim quanto a ideia de Deus. Comecei a reparar nos pés dos desconhecidos, pés brutos, pés sujos de areia, pés marcados pelas tiras de couro das sandálias, e, como as quiromantes fazem com as mãos, eu pensava ler o futuro nos pés dos homens. Mas o futuro nunca esteve ao meu alcance. A bem da verdade, eu lia outra coisa - lia sobre mim mesma - e foi nessa época que descobri, como quem descobre de repente um novo endereço dentro de si, foi nessa época que eu descobri o sexo.

Talvez meu corpo tenha sabido disso antes de mim. A princípio, não pude dar nome àquilo que meu olhar procurava nos corpos dos outros. Tampouco compreendi o fascínio que a bruteza dos pés masculinos me causavam, a ponto de arrepiar a flor da pele, naquele minúsculo intervalo entre o desejo e o nojo, onde uma coisa se parece tanto com a outra que já não podem existir separadamente. Pouco a pouco, caiu sobre mim como uma chuva a certeza de que não havia nada a entender. Clarice Lispector disse quase tudo quando escreveu: a solução do enigma está na repetição do enigma. Não havia matemática para traduzir por que o bruto me fascinava. A resposta estava na própria pergunta, mudando a ordem das palavras: me fascinava porque era bruto.

O primeiro menino com quem eu dormi passava o verão todo na praia. Eu o conheci descalço na areia. Na terceira noite que passamos juntos, trancados no quarto, fazendo coisas de adulto em silêncio, assim como fazem todos os adolescentes, pedi para beijar os pés dele. Foi como arrancar-lhe o coração do peito e vê-lo bater miseravelmente na minha mão. Aprendi que os meninos têm medo do sexo, quando ele se torna um animal que eles mesmos não podem controlar. Um animal que não podem mais alimentar sem o risco de perder a mão. Meu primeiro namorado ficou mudo, uma máquina durante o blackout, enquanto eu ajoelhava e, à imagem de um cachorro, colocava o pé dele na minha boca. Sentia o dedo pulsando, vivo, contra o céu da minha boca. Não tinha gosto de nada, talvez de sal, mais nada. O menino permaneceu como um morto, sem saber o que fazer com o meu desejo ou com o dele. Se aquele não foi o final do nosso namoro, foi o começo do final.

Nem todo homem é capaz de preencher os lugares mais escuros de uma mulher.

Uma semana depois, escrevi meu primeiro conto em folha de caderno e, sem ser vista, coloquei dentro da mochila dele. Queria que o rapaz me conhecesse um pouco mais por dentro. Por baixo da minha pele, por baixo das minhas sardas e dos meus cabelos lavados, por baixo do meu perfume, das minhas roupas de sempre, havia toda uma mulher esperando a primavera de todas as coisas, uma mulher com cheiro de brisa de verão, sempre passageira. O conto não era biográfico, nada daquilo tinha acontecido comigo, talvez o conto fosse justamente o que eu estava esperando que um dia me acontecesse.

Na manhã seguinte, o menino me devolveu as folhas de caderno e não falamos uma palavra sobre isso. Era como se o ato de escrever aquilo ou mesmo o ato de ler o que fora escrito nos transformasse em dois criminosos, quando, na verdade, nos transformava apenas em dois adolescentes que já não eram virgens.

Peço perdão aos leitores mais sensíveis. O conto era assim:

Quando eu era menina, nem quinze anos ainda, eu tinha problemas para dormir. Ficava rolando na cama, de olhos abertos, com a calcinha molhada. No meio da noite, quando meus pais já estavam dormindo, a casa toda de luzes apagadas, eu escapulia do quarto, vestia uma roupa curta e saía pela cidade. Gostava de andar nas ruas do Rio de Janeiro, à noite, provocando o olhar dos homens mais velhos. Muitos deles pensavam que eu era puta e eu nunca disse a ninguém que eu não era. Perto do meu prédio, havia uma quadra de futebol, toda de concreto, onde os meninos do bairro costumavam jogar bola, madrugada adentro. Ao redor da quadra, as árvores coavam a luz dos postes e criavam a atmosfera sinistra de um lugar onde se podia encontrar, a qualquer momento, tanto um cadáver quanto um casal de namorados sem roupa. Eu me sentava ali, no escuro, e assistia aos meninos jogando sem camisa. O suor escorria pelas dobras do abdômen, empoçando nos shorts, dando a ver o volume dentro dele. No escuro da pracinha, eu respirava aos pulos. Quando ninguém estava vendo, abaixava a calcinha até os joelhos. Eu era virgem, naquele tempo. Nunca tinha visto um pau, que dirá sentido entre as minhas pernas magras de menina nada além dos meus próprios dedos. Os meninos do bairro me achavam muito novinha para estar na rua àquela hora da noite e, a bem da verdade, eles pensavam que eu sofria de insônia nos nervos, nem desconfiavam do que eu ficava fazendo aquele tempo todo no escuro. De todos os meninos da rua, eu preferia um que se chamava Rafael P. Ele devia ter 17 anos, era alto para a idade, jogava descalço e tinha pés grandes. Era nele que eu pensava quando estava no escuro.

Uma noite daquelas, depois da chuva, o campinho estava quase vazio. Cheguei lá por volta de uma hora da manhã. Na quadra, Rafael P. e um menino moreno, sozinhos, chutavam uma bola murcha um para o outro. Eu me sentei no escuro, porque não podia mais estar de pé. Minhas pernas tremiam. Aquele sempre fora o meu desejo mais secreto: encontrar Rafael sozinho (ou quase sozinho) na quadra. Dizia para mim mesma que, se isso um dia acontecesse, eu deixaria de ser virgem ali, como quem atravessa uma fronteira e já não pode voltar a ser quem era antes. Naquela noite, algo falou por mim. Não era sequer a minha voz. Eu me aproximei dos dois meninos. Rafael foi o primeiro a levantar os olhos. Ele não me disse nada. Eu também não sabia o que dizer.

O menino moreno sorriu. Só depois eu entendi o porquê. Minha calcinha estava molhada e, como a saia era curta, eles podiam ver quase tudo que a roupa não escondia. Rafael P. se aproximou e perguntou a minha idade. Eu menti. Disse que tinha 18. Ele sabia que eu não tinha. O menino moreno perguntou o que eu queria com eles. Eu respirei fundo e disse:

- Quero deixar de ser virgem.

Podia sentir o sangue circular pelo meu corpo. Os meninos me olhavam como se eu fosse o próprio futuro, ali, aos pés deles.

- Como? - Perguntou o menino moreno, que era o mais falante de nós.

- De quatro.

Eu nem sabia o que aquilo significava. Tinha ouvido num filme pornô. Funcionou como palavras mágicas. Pude ver o volume por baixo dos shorts dos meninos, como dois animais despertando. Rafael P. estava de pau duro. O menino moreno tirou a minha blusa e, como estava sem sutiã, fiquei só de saia e calcinha na quadra.

- Você vai fazer o que a gente mandar?

O menino moreno abaixou as calças e mostrou o pau. Era um pau feio, com veias roxas à mostra, a cabeça vermelha de fora. Não sabia o que fazer com as mãos, então fiquei imóvel, como as mãos unidas como se rezasse, esperando qualquer informação. O menino mandou eu ficar de joelhos. Lembro até hoje da pele dos meus joelhos no chão rachado da quadra. O menino moreno enfiou o pau duro dentro da minha boca. Fiz o possível para engoli-lo. Ouvia os gemidos do menino, feito uma música ao longe. De repente, outro ruído, mais próximo de mim, me fez abrir os olhos. Rafael P. tinha abaixado a cueca e batia punheta olhando para a cena, à distância, como se dela não participasse. O pau dele era grande e rosa, um animal em si próprio, e a porra já começa a brilhar na ponta, feito uma garoa fina.

- Ela engole?

O menino moreno sacudiu os ombros. Ele tirou o pau da minha boca, todo babado. Rafael P. se aproximou de mim, com o pau para fora. Eu sabia o que ele queria. Mas eu queria mais. Abaixei a cabeça e lambi os pés dele, os pés descalços. Chupei o dedão e, naquele momento, tive meu primeiro orgasmo, sem aviso, como alguém que recebe um tiro em cheio no coração. Com o pé de Rafael P. na minha boca. Lembro de sentir cada centímetro do meu corpo, lembro do gosto de ferro, lembro do gosto de sêmen.

O menino moreno pegou o boné e foi para casa.

Rafael P. olhou para os lados. Ninguém por perto. Ele me mandou tirar a saia. Depois rasgou minha calcinha com as mãos e eu me pus de quatro na quadra. Apoiado no chão pelos joelhos, ele meteu com força, como se soubesse que nunca mais aquilo aconteceria com ele novamente. Quase gritei de dor ou de prazer, não sei dizer qual dos dois, minhas emoções eram tintas misturadas. Eu gozava sem parar, incontáveis vezes, seguidamente. Mas ele não. Quando tirou o pau de dentro de mim, eu desarmei feito um brinquedo no chão da quadra, caída, sem forças, nua. Ele ficou de pé. Eu não queria que ele fosse embora assim. Rafael me mandou ficar parada, sem dizer uma palavra mais, sem respirar. Eu sabia que aquilo não era possível para os seres vivos. Ele disse, não pediu, apenas disse que gozaria no meio do meu rosto, para marcar seu território conquistado. O menino tocou punheta até gozar, audivelmente, com um grito desesperado. Foi tudo no meu rosto. Era nojento e bom, ao mesmo tempo. Era salgado. Eu nunca me esqueci as sensações contraditórios daquela noite. Depois disso Rafael P. colocou os shorts com pressa, calçou os chinelos deixados no canto da quadra e foi pegar a bicicleta. Saiu dali voando como um morcego. Eu fiquei sozinha.

O conto terminava abruptamente, porque tudo já tinha sido dito e também porque não me ocorrera final melhor.

Eu queimei as páginas de caderno no tanque de casa, antes que algum adulto encontrasse. Na semana seguinte, o menino da praia - aquele que tinha tirado minha virgindade - ficou com febre e faltou cinco dias de colégio. Secretamente, eu pensava que o meu conto era a verdadeira febre. O nome do menino da praia era Rafael P. - assim como o menino do conto, não por acaso. Acredito que, para Rafael P., a história era sobre algo que poderia ter acontecido, não aconteceu e não aconteceria mais. Isso ele não pôde suportar sem adoecer. No sábado, dia em que os namorados vão ao cinema ou pelo menos dizem que vão aos mais velhos, ele me telefonou, tarde da noite. Era um telefonema de despedida. O namoro terminou amigavelmente, porque o sexo o contaminara como uma doença mortal. Rafael P. teve ciúmes da minha imaginação - não soube diferenciar o desejo e a realidade na vida de uma menina de quinze anos.

- Era verdade?

- Cada palavra.

Foram as últimas palavras que disse e ouvi dele.

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Apreciadores (1)
Comentários (1)
Postado 10/09/20 00:20

Eu não sei expressar o quanto gostei desse primeiro capítulo! Só consigo dizer que foi interessante e incomum, mas isso não é o suficiente...

Sua narrativa trás uma proximidade com o leitor tão confortável que é como conversar com uma velha amiga ao mesmo tempo que não é, eu adorei!

A descoberta de uma garota com seus desejos e fetiches pode ser algo assustador e vergonhoso, na verdade esse momento é temente para qualquer um. As perguntas que surgem e as ações "toscas" que fazemos como a maior questão: será a outra parte vai gostar?

Acho que divaguei bem logo agora ahhahah (desculpa se a ofendi)

Agradeço por compartilhar sua obra e Bem-Vinda a Academia de Contos!

Assinado uma pequena vampira, <3