Liberdade
Nilton Victorino Filho
Tipo: Conto ou Crônica
Postado: 16/09/19 10:32
Gênero(s): Aventura Cotidiano
Avaliação: Não avaliado
Tempo de Leitura: 9min a 12min
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Palavras: 1452
Livre para todos os públicos
Capítulo Único Liberdade

O fim das terras do Educandário Dom Duarte se dava exatamente no fundo do Cenáculo de Nossa Senhora, esse era o limite da capital paulista também, entre o prédio das amaríssimas freiras e os mourões do sítio do Bráulio Silva, corria uma estrada longa, a qual, o sexteto tinha na conta de mágica.

Essa estrada, geograficamente, já se encontrava em terras do Taboão da Serra, do fim da estrada, onde do alto de um enorme barranco precipitava uma longa caída, com uma mata densa e fechada, podia-se ver a BR-116, na margem oposta dessa, o gigantesco prédio da PRODESP.

Ladeada de pinheiros e eucaliptos de replantio, tinha a garantia de sombra eterna, quando muito, o sol fazia uma linha de meio metro de claridade, bem no meio dela e alguns saguis pulavam livres por entre as arvores, o canto de várias espécies de pássaros também se faziam presentes, em toda a extensão.

Andar por essa estrada nos era uma misto de desafio e exercício de liberdade, primeiro que, era proibido a qualquer interno, tinha um sabor de estar fora da lei e, tinha o valor histórico, contou o seu Tinoco que, foi por ali que as tropas de Getúlio Vargas tiveram acesso à Estrada Velha de Cotia e seguindo-a, surpreenderam as tropas paulistas em Pinheiros, na contenda de 1930.

Coisa de um quilometro, no lado esquerdo da estrada, havia um pequeno casebre ao lado de um enorme barracão, onde uma senhora negra com roupas de mãe de santo ficava sentada na frente, tinha sempre o olhar perdido e parecia mesmo reagir ao canto dos pássaros.

Quando nos convidou a entrar em sua propriedade, ao perceber que eu e o Viana tínhamos passos iguais e trejeitos parecidos, disse com um sorriso estranho:

_Exu e Ogum são irmãos gêmeos.

Quando havia festa, ela nos chamava para os banquetes e, em tardes calmas, ela contava, sentada em sua cadeira velha, histórias de espíritos guerreiros que amavam a liberdade.

No dia em que passamos por ela, íamos para o confronto de futebol no Taboão, ela viu que o Sebastião estava com o grupo, quando passamos, inclinou a cabeça e disse:

_ A Run Boboi!!! O Sebastião, que era adepto da religião dela, respondeu-lhe outra frase.

Vendo que eu tinha a interrogação nos olhos, o Viana respondeu:

_. É a saudação à Oxumaré.

Do outro lado da estrada, havia um sítio de gente branca, lá não haviam mulheres, só gente mal-encarada que cuspiam no chão e andavam com armas à mostra.

O casarão era antigo, da mesma construção dos prédios do Educandário Dom Duarte, o prédio lembrava o almoxarifado, a entrada, porém, lembrava o teatro com suas colunas romanas, dezenas de gaiolas, com pássaros de várias espécies decoravam o alpendre, tudo se podia ver da estrada, posto que, nunca fomos convidados a entrar.

E, era sempre pesaroso, depois de passar pela casa simples da dona Maria, que falava com os bichos, ver aquela riqueza com animais privados de sua liberdade, era como se o céu fosse vizinho do inferno, nos dava tristeza.

Naquela manhã, que era uma manhã morna de agosto, nenhum dos elementos do sexteto infernal fazia ideia de que iriam viver uma, de suas melhores aventuras.

Quando cheguei no colégio, os cinco já eram amigos e andavam sempre juntos, o Spock, o Téquinha, o Viana e o Edson eram mais velhos e entraram com sete anos de idade, o Adilson era da minha idade, soldado raso feito eu e, já estava lá há três anos.

Só na minha chegada foi que, começaram as aventuras de fato, como se eles estivessem me esperando, tudo o que um garoto de 10 anos precisa para ser feliz, era de amigos assim.

Fizemos todas as obrigações no pavilhão e recolhemos as pipas com as latas de linha que escondíamos na sapateira, subimos o barranco das uvalhas, enchemos os bolsos com a fruta azeda e, debaixo da arvore cortada, começamos a correr contra o vento, o vento não estava forte e isso dificultava a subida das pipas, os maiores conseguiram colocar as pipas no alto, sem lograr êxito, eu e o Adilson nos deixamos ficar à sombra da arvore cortada, que nós batizamos de arvore fantasma, já que ela dava sombra e de noite, vista da janela do segundo dormitório, parecia uma pessoa parada na estrada.

Não éramos bons, eu e o Adilson, no trato com as pipas, mas, gostávamos de ver as manobras que os mais velhos faziam no ar e, sempre dava para ajuda-los na hora da briga com as pipas dos rivais, tem que ser hábil para soltar ou enrolar a linha, nessas guerras aéreas, o sexteto possuía umas 50 pipas ou mais.

Acaba que o vento não vingou mesmo, mantê-las no ar dava muito trabalho e sem ter com quem rivalizar perdia a graça da brincadeira, os outros quatro desceram as pipas, enrolaram as linhas e se acomodaram na sombra conosco, eu ainda não possuía o meu gravador portátil então, não podíamos ainda ouvir o Clube da Esquina, começaram a sugestões de que a gente poderia fazer para ocupar o resto do dia.

É bem possível que acabássemos descendo para o campo do 14 e passássemos o dia jogando futebol então, escutamos o barulho de motor de um carro vindo da estrada do Cenáculo, olhamos todos para a direção, uma Rural passou por nós em alta velocidade, vinha com três ocupantes dentro dela, na parte traseira várias malas e no capô, algumas varas de pesca.

A ideia não surgiu de imediato, todos atinávamos de que pessoas se tratavam, aquelas pessoas sebosas que mantinham dezenas de pássaros nas gaiolas e tinham olhares ameaçadores.

Passados alguns minutos, todo mundo pensou na lógica daquilo tudo e, sabendo que só voltariam pela noite, a ideia foi unanime...soltar os pássaros cativos.

Corremos para o pavilhão 14, guardamos as pipas e latas de linha e como se fôssemos uma barreira, partimos no mesmo passo, rumos à estrada mágica, fazer o bem na forma de mal.

Enquanto esse estranho grupo caminhava, olhei no rosto de cada um deles e entendi a razão que os movia, liberdade era uma coisa que eles não tinham, alguns deles haviam sido entregues ainda bebês em orfanatos e agora caminhavam para libertar seres que nasceram para ser livres, mesmo sem ter a sua, dar aos outros já ajuda a alma...ah, eu só queria estar com meus amigos e fazer justiça, as consequências, sofreríamos juntos e de cabeças erguidas, afinal éramos cavaleiros errantes.

Como heróis quebramos a curva da estrada, aos nossos pés e contra a luz do sol, uma fina e quase imperceptível névoa amarela subia das pontas do capim gordura e deixava um cheiro ocre no ar, ao chegarmos no portão do Cenáculo, uma noviça nos convidou para o suco com bolacha, ninguém tinha fome e, se tem uma regra nessa vida que tem poder, é aquela que reza que, nenhum órfão diz não à uma religiosa... nenhum.

As freiras sempre advinham quando o guri tem cara de órfão, apareceram mais umas dez delas, todo o carinho e zelo foi entendido por nós como um encorajamento à execução da missão, partimos para a estrada mágica sem dúvidas de que estávamos a fazer o bem.

Quando passamos em frente ao barracão da dona Maria, ela não estava sentada em sua cadeira, como de costume, estava em frente ao mourão da entrada do terreiro e, ao ver que alguns de nós se agachavam, adivinhou o mal feito e sorriu-nos cúmplice.

Entramos com cuidado no sítio, subimos no alpendre e fomos abrindo as gaiolas, cada pássaro que se via livre sumia, não satisfeito em soltá-los, o Viana derrubou uma gaiola e chutou-a num gesto de fúria, o Spock fez o mesmo e o restou os imitou.

No fundo da casa havia a mesma quantidade de gaiolas, toda gaiola que o Téquinha abria, dizia a espécie do pássaro preso...coleirinha, sabiá laranjeira, papa-capim e por aí afora.

Quando a última gaiola foi aberta e quebrada, demos por encerrada a missão, na parte de trás da casa havia uma espécie de galpão, o Adilson se dirigiu para lá e ficamos esperando ele voltar, quando saiu, segurava numa corrente um cachorro que, de tão magro, fazia pena.

Não voltamos pela estrada, nos fundos do sítio começava uma densa mata que ladeava o pomar e terminava no lago da olaria, mais uma aventura para o sexteto infernal, o Edson era um batedor de primeira linha e nos conduziu até o nosso destino.

O lago da olaria ficava abaixo do campo do 14, o Adilson livrou o vira-latas da corrente, a gente sabia que ali, pelas casas dos funcionários, ele encontraria um bom lar e, passamos o resto do dia deitados à sombra da majestosa araucária do bosque.

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Comentários (2)
Postado 03/08/20 17:38

Gosto desse seu jeito de escrever, que conta as histórias das memórias antigas, é muito bom e gostoso de ler, meus parabens eu adorei viu *_*

Postado 10/08/20 19:30

Sr. Nilton!!! Que alegria esse texto me deu!!

O modo como você foi descrevendo toda a aventura foi realmente fascinante!! E o título muito bem escolhido!!

"E, era sempre pesaroso, depois de passar pela casa simples da dona Maria, que falava com os bichos, ver aquela riqueza com animais privados de sua liberdade, era como se o céu fosse vizinho do inferno, nos dava tristeza." - Essa frase foi tão intensa, me arrepiou toda a alma!!

Fico feliz demais que no final, vocês conseguiram dar liberdade para esses animais!! <3

Um grande abraço!!