Eu a vi uma vez. Ela era deslumbrante como o céu sem estrelas, como uma noite de lua nova, como o campo enegrecido depois de uma devastação.
Eu estava sentada ao lado da minha adormecida avó paterna, a única que eu tinha contato após o falecimento dos meus avôs. Ela, coitada, debilitada por causa do Alzheimer e enfisema pulmonar, com a corcunda pressionando seus nervos, queria mais do que tudo se entregar para Deus e deixar a Terra. Ela, bela e conservada com seus noventa e três anos de idade, completados alguns meses antes, estava com as pálpebras fechadas aproveitando o que seria sua última noite de sono.
Recebi um sonho de madrugada, uma voz feminina dizia-me para levantar e velar minha avó, pois ela não tornaria a abrir os olhos.
Sofrera tanto, minha velha senhora, com seu marido bipolar e as dificuldades financeiras dos pais. Ela foi uma mulher guerreira, minha referência feminina na ausência de uma mãe a quem me amparar. Eu vivia me abrindo com ela, ainda que poucos minutos depois ela esquecia de tudo o que eu falava. Ela amparava minhas dores quando havia as suas próprias, ela confundia meu nome com o da minha prima e depois ria como uma criança, a dentadura exposta com os dentes artificiais retilíneos.
Uma vez eu comentei com ela o quão bonitos seus dentes eram. Apenas uma vez e nunca mais, ao vê-la com o olhar brincalhão e inocente tirar a dentadura da boca e expor sua gengiva nua. Os dentes inferiores eram meio tortos, mas isso não tirava por menos sua elegância.
Mesmo corcunda, minha avó tinha um balançar suave. Ela era uma das melhores dançarinas de valsa da cidade, vivia frequentando clubes antigos que hoje nem o nome existe mais. Ela participava do desfile da escola de samba, costurava as roupas do meu pai e tias, tratava a todos com gentileza e nunca desistiu de sorrir, apesar do marido horrível que tinha.
Eu nunca conheci meu avô, e que Deus o tenha, esse homem amargo que eu nunca consegui compreender.
Tanto falo da minha avó, esse anjo que caiu na terra, para fazer o possível de não me lembrar da segunda figura majestosa daquela madrugada.
Após acordar, logo depois da voz em meu sonho esmaecer, coloquei um roupão por cima do pijama fino. Era primavera, a noite estava gelada. Andei pé ante pé até o quarto ao lado, que estava com a porta aberta caso minha avó tivesse mais um ataque de tosse e meu pai precisasse sair correndo levar-lhe água e dar-lhe pancadas nas costas. Sentei-me na cadeira de balanço ao lado da cama, e fitei seu rosto enrugado, cheio de pintas da idade.
Refleti naquele momento quanto peso ela levava em sua corcunda. Noventa e três anos é muita idade, como ela mesma fala, e um dia eu chegarei lá. Nego com minha cabeça esses pensamentos, eu não quero chegar em uma idade tão avançada para no fim cada passo que eu der for acompanhado de falta de ar, engasgos se tornem frequentes e a sensação de não ter mais o que fazer na Terra se apoderar de mim.
Foi então que ela entrou, a Dama da Escuridão, Rainha dos Reinos Profundos.
Ela entrou adornada em vestes negras e pedras de ônix, seus olhos opacos não refletiam as lágrimas que ameaçavam cair de meus olhos. Trazia acompanhando-a o ar frio de primavera, o cheiro pútrido de corpos falecidos, e minha avó logo se juntaria a eles.
Certamente aconteceu um milagre para meu pai não ter acordado ao som do meu choro. A Morte deve ter se certificado de que ele não acordaria na hora errada.
Seu rosto parecia de mármore, com traços rígidos e anormalmente pálidos. Seus cabelos sedosos escapavam do capuz e flutuavam a sua volta, a gravidade não parecia ter poder para sua magnificência.
A Imperatriz viera levar o sofrimento da minha avó, deixa-la descansar, enfim, depois de tantos anos conosco. “Ela já deu, recebeu e viveu o suficiente”, disse com sua voz de veludo, e eu só pude concordar.
Entristecia-me ver aquela figura negra se ajoelhar e sussurrar algo no ouvido surdo da minha velha senhora, e logo enchi-me de pânico ao presenciar a alma idosa separando-se do corpo, com toda sua formosura e vivacidade, renovada e em plena juventude, sorrindo para mim como se eu ainda fosse aquela criança que saía da escola e ia para seu antigo apartamento ler revistinhas da Turma da Mônica.
O nome da minha avó significa “espírito de luz”, seu pai era espírita e ela me trazia mais felicidade que qualquer outra forma de vida.
A Morte pegou sua mão e olhou para mim, uma tentativa de sorriso aparecia em seus lábios finos. Ela puxou a alma luminescente da minha parente amada, e minha parente amada sorriu para mim ao acompanhar a Dama da Escuridão pelos corredores escuros da nossa casa.
Ela estava, finalmente, livre de seu fardo.
Sua perda não me deixou triste, pois eu havia sentido sua felicidade.
Minha avó estava feliz por não precisar depender mais de nós, descendentes, para tudo o que fazia. Ela estava feliz que finalmente seguiríamos em frente sem precisar leva-la nas costas.
A Morte deixou-me outro presente, além da ciência da alegria da minha velha senhora.
Ela me deixou a marca de um beijo, para que eu não esquecesse minha gratidão.