Duas considerações, antes da narrativa dessa aventura:
Primeira, sendo órfão muito cedo, tive que me inventar do nada, troquei alguns sentimentos e matei outros para sobreviver, troquei o medo pelo otimismo e, nas piores situações da minha vida eu me portei de forma que nada pudesse me fazer mal, com o tempo, eu passei a fazer piadas nas piores situações.
Segunda, nas baladas, quando a coisa ficava preta meus amigos não pediam socorro, olhavam para mim e, eu estando ali, era garantia de que tudo ia acabar bem, com efeito, eu sempre fui a pessoa de mais sorte no mundo.
Era uma tarde abafada aquela, um aviso de que logo vai haver chuva grossa, para os lados do Km 10 da Raposo Tavares, eu e os amigos nos envolvemos numa briga com os nativos do bairro, quando as sirenes da barca tocaram as turmas se dispersaram, eles estavam em casa e logo se esconderam, muito longe de nossa casa nos conformamos e levantando as mão à cabeça, ficamos de cara para o muro.
Geral de praxe e um dos nossos trazia nos bolsos umas gramas de maconha:
_Vocês são de onde??
_Educandário Dom Duarte...
_Oi???
_Jardim Arpoador.
_Muito longe de casa, muito bem, brigando e carregando maconha... Bóra lá, conversar com o delegado.
Algemaram todos, uns nos pulsos e outros nas canelas e éramos quinze, quando chegou a minha vez não havia mais algemas, os quatorze amontoados e eu solto dentro daquele cubículo que cabiam quatro, apertados e suando em bicas num escuro de dar medo, quando o carro passava num obstáculo, éramos jogados para o teto e voltávamos ao piso.
Constrangido por ser o único solto no carro e percebendo que um dos amigos ameaçava de chorar, a expectativa de sofrer violência faz isso com adultos e, o mais velho de nós tinha quinze anos, percebi que nas laterais da lataria da barca haviam umas fissuras de respiração, muito pequenas, com otimismo dava para enxergar mal o lado de fora e comecei:
_Senhoras e senhores, estamos agora no frondoso e próspero bairro da Vila Indiana, podemos enxergar à nossa direita, árvores plantadas pelos bandeirantes em longínquos tempos...
Alguns meninos passaram a rir, conforme o carro seguia, eu falava a rua e algum fato em especial:
_Senhoras e senhores, estamos de frente da padaria que o Zoinho ficou com vergonha de comprar camisinha...
E já estavam todos os amigos alegres dentro da barca.
Seguiu a barca em seus solavancos, aumentando a velocidade e freando, nós lá dentro, no escuro e suando feito porcos que vão ser abatidos, quando chegamos ao pátio da delegacia, eu terminei a narração turística:
_Senhoras e senhores, chegamos ao famoso restaurante da Vila Sônia... prato de hoje é chá de pancada e sopa de borracha, ao desembarcarem confiram seus pertences.
Essa não teve graça alguma, a tampa traseira foi aberta, o policial sorria, imaginei que fosse pela expectativa de espancar-nos... enquanto um deles livrava os amigos das algemas o tenente gritou:
_Quem foi o engraçadinho da narração??
Levantei a mão, ele levantou a mão em minha direção.
_Olha aqui moleque...
Repentinamente, baixou a mão e, acompanhado pelos outros três, soltou uma gargalhada, dessas de exú caveira.
_Meninos, quero informar que, por motivos alheios a nossa vontade, o chá e a sopa não serão servidos, na próxima ocasião serviremos o dobro e não cobraremos nada.