Uma grande amizade começa sempre sem ser forçada, ela é imposta pela ocasião e vai crescendo, para nunca mais morrer. Já havia completado 2 anos, desde a tragédia que se abatera na minha família, havia sido transferido do Instituto Sampaio Viana para essa nova casa, com o tempo, peguei o habito de chamar orfanato de casa e, convenientemente, esse lar tinha o nome de Casa da Infância. Era 1970 e, eu completaria 4 anos de vida, a vida já tinha me mostrado o pior das tempestades e eu havia sobrevivido à ela, no começo eu tinha me debatido, deixado a tristeza ganhar e, vi que isso me afogava mais e mais.
Num determinado ponto, como um naufrago, submergi à superfície, respirei e senti o ar de lá e gostei, resolvi boiar na água e deixar a correnteza me levar.
Enquanto esperava na portaria as pessoas resolverem a papelada da internação, uma freira passou no corredor e me viu, ajoelhou-se na minha frente e percebendo a minha aflição, sem mais nem menos, abraçou-me, levantando-me da cadeira.
Lá em cima, suspenso nos braços dela, como quem já havia se esquecido do carinho, senti a paz que há muito tempo não sentira mais, encostei a cabeça do ombro dela e chorei...Agora, com 50 anos, lembrei-me do momento e as lagrimas voltaram.
Momentos depois, já afeito do momento, olho para o grande saguão e vejo a claridade do ambiente, muito diferente do lugar de onde eu vinha, no escritório, a madre da Glória ainda discutia a minha internação, a madre Brasil havia se sentado ao meu lado e segurava a minha mão, a manhã jogava um sol no meio do saguão, através da grande porta de vidros.
Essa mesma porta é aberta pela moça da recepção, aparecem duas figuras, uma senhora com jeito de sofrida e seu filho que, sabendo que ia ficar só, chorava.
A madre Brasil levantou-se, mas, não largou a minha mão e fomos assim, encontrar os recém chegados, ainda segurando a minha mão, ajoelhou-se diante do guri, que era mais baixo que eu, pôs-se a acalma-lo e disse que ele teria vários amigos, apontou pra mim e disse que eu seria o primeiro.
Olhamo-nos e eu estendi-lhe a mão, ele retribuiu, ainda soluçava.
Daí para frente, quem via um, procurava o outro...a gente parafraseava os "Originais do Samba", denominava-nos de... a corda e a caçamba, as freiras e as moças preferiam nos chamar de dupla diabólica.
Num passeio à Serra da Mantiqueira, subimos numa arvore e nos perdemos do resto do grupo, era noite fechada, quando os bombeiros nos acharam eles estranharam a nossa tranquilidade diante do perigo, acabou que, passamos a noite no batalhão e voltamos no dia seguinte como heróis.
Diferentes em tudo, eu era introspectivo e ele era solto e, é claro, que a habilidade no esporte veio primeiro pra ele, o Fernandinho era um malabarista da bola, isso lhe dava o direito de escolher o time, a primeira escolha era sempre eu.
Fomos fazer um jogo de amizade, que em toda época do aniversário do colégio Catarina Labouré, a Casa da Infância era o convidado.
E, era sempre a mesma história, tendo o colégio anfitrião meninos mais velhos, a derrota era certa sempre, participávamos do jogo por participar e íamos pro resto da festa, ou seja, muita comida e doces.
Nessa ocasião a coisa mudou, quando fazíamos as filas pra os comprimentos habituais, um dos meninos do Catarina passou do lado do Fernandinho e sorriu da pequena estatura dele, ao fazê-lo, passou a mão em sua cabeça, como se afagasse um bebê.
Ah, o macaquinho virou o cão na quadra, o menino grande tomou a bola entre as pernas seis vezes seguidas, a cada uma delas a torcida das meninas gritava Olé.
Não restou outra alternativa, a não ser sair de quadra chorando, nesse instante já se configurava a nossa vitória, a madre Dolores, constrangida, queria consertar as coisas, já que o Fernandinho, continuava arrasador, fazia gols e olhava desafiador para o banco de reservas.
Tirou o Sebastião do gol e deu a camisa de goleiro ao Fernandinho e, aí ficou bem pior, o macaquinho fechou o gol.
Era uma aliança selada, sem protagonismos, dois guris tentando ser felizes num mundo governado por pessoas tristes, aprendi as letras primeiro e as ensinei para ele, sempre que eu queria calma para ler, vinha ele brincar, quando eu conseguia ler, tinha que contar para ele a minha impressão e, por conta disso, virei contador de histórias.