Parte dos meninos que viviam no Educandário Dom Duarte vinham da Casa de Infância do Menino Jesus, esse é o meu caso. outra parte vinha do Quadrilátero, esse é o caso do Viana, uma outra parte vinha do Sampaio Viana, esse é o caso do Valter Spock e uma parcela desses, vinham da casa de suas famílias, caso do Luiz Carlos, o Feliz.
Independentes de onde vinham, em terras educandárianas, para melhor convívio, formavam grupos, quintetos, quartetos, trios ou duplas, as duplas eram mais comuns.
Dificilmente, um interno campeava o vasto terreno do colégio desacompanhado de seu melhor amigo, haviam duplas memoráveis, feito os Valdevino e Lourival do 12, Beréba e Gibi do 19, Valdeci e Dalcídes do 13 e muitas outras, quando você via um integrante, o outro estava por perto.
Geralmente, os integrantes das duplas eram moradores de um mesmo pavilhão, mas, haviam os raros casos de amizades em que, sendo a vivência mais antiga que a data da internação, a barreira geográfica não interferia na convivência das duplas, esse é o caso do Udiney do 11 e o Galito do 13 e o Fernandinho do 17 e o Edson Sena do 19.
Andar em bando era até uma maneira de se defender, na celebração e na hora do perigo, seu melhor amigo estava ali, do lado, na hora que o bicho pegava, corriam os dois, na hora do castigo também.
Haviam, no pavilhão 14, dois Gilbertos, um era o Grilo e já falamos dele em postagem, o outro era o Gilberto Camargo...irmão do Adalberto.
Esse segundo, não era muito fácil de se relacionar, raramente se dava bem com os outros, andava mesmo sozinho, seu jeito de psicopata afastava-lhe as companhias
Sem parceiros para as aventuras, o menino era um franco atirador, raramente saía dos limites do pavilhão 14, ou ficava no bosque ou no bananal, em cima da mangueira e parecia mesmo feliz.
Era fácil vê-lo nesses lugares agachado e falando sozinho:
_Eu hein neguinho, esse moleque é doido.
_Mano, às vezes, seu melhor amigo é você mesmo.
Um dia de sol, os laristas do 14 estavam de folga, o Luiz emergente cuidava do pavilhão, boa praça que era o filho do seu João do forno, trancou o pavilhão e levou os pequenos à passear no Parque das Hortências.
Bateu, de repente, uma vontade de se aliviar e, o Gilberto correu, constatou que estava trancada a porta e, sem titubear, atravessou a estrada e desceu o bosque, embaixo das sombras dos pinheiros, agachou-se.
Isso, seria a coisa mais fácil do mundo a se fazer, porém e, sempre tem o tal do porém...o infeliz, sem perceber, pisou num ninho de formigas caticeiras.
Rapidamente o Gilberto subiu de volta o barranco e correu na estrada com o calção ainda arriado, nesse momento, uma dupla, o Tutinho e Claudio, estavam sentados no alto do barranco das uválias e, ao verem a cena, caíram na gargalhada.
Eu e o Viana encontramos com o Gilberto minutos depois, ele já havia se refeito e contou-nos o acontecido, a outra dupla ainda se rolava de rir do pobre.
O Gilberto olhou para o Tutinho e o Claudio e falou:
_Estão caçoando de mim??Vão pagar caro.
Não foi para nós que ele disse isso, foi para si mesmo, uma sobrancelha levantada e a outra abaixada, isso foi medonho, deu-nos calafrio.
Bom, essa dupla, para celebrar a velha amizade, tinha o habito de juntar dinheiro, ir ao almoxarifado do irmão José, comprar guloseimas, estender uma toalha no chão e fazer um pic nic embaixo da mangueira do bananal.
O Gilberto não tinha um melhor amigo, nas duplas, existe sempre o que é mais racional, esse que não deixa as coisas ficarem feias e, sendo assim, não houve quem pudesse aplacar a sede de vingança do maluco.
Do lado de fora do pavilhão, no triangulo que formava o primeiro e o segundo dormitório, havia um jardim de plantas ornamentais, no centro dele, um pé de limão frondoso de tamanho médio, no galho do meio um grande cacho de marimbondo havia sido feito e já crescia há meses.
No dia seguinte resolvemos seguir o Gilberto, quando se aproximava da duas horas da tarde, com todo cuidado do mundo, de posse de uma sacola do plástico, fechou a sacola sobre o cacho de marimbondos, quebrou o galho e não perdeu um deles, amarrou a sacola e sorriu para o amigo imaginário.
Seguíamos-o, de longe, ganhou a área do bananal e se acomodou na copa da mangueira, passou a assobiar uma canção "Viva as irmãs de São Francisco".
Na nossa caixa de alvenaria de sempre, podíamos vê-lo feliz, antecipando e saboreando a vingança.
Minutos mais tarde a dupla, sem nos ver, esgueirou-se entre as fileiras de milho seco e desapareceram no bananal, levavam um toalha e as guloseimas num saco grande de papel.
Toalha armado no chão, filão com mortadela cortadas no facão e Kí-Suco numa garrafa de alumínio, sonhos de valsa ornamentavam a ceia da tarde, um bem-te-vi cantou lá pros lados do campo e, repentinamente , uma voz medonha veio do céu:
_Sete merri três para Sete merri quatro...Torpedo lançado.
Sem tempo para olharem de onde vinha a voz, um bomba explodiu no meio da tolha estendida, a queda liberou o conteúdo, centenas de marimbondos os atacou ferozmente e, enquanto corriam, gritavam, cada um para um lado.
_Cara, eu falei que esse moleque era doido.
_Amigo, eu preciso de mais provas.
O Gilberto passou correndo por nós, com a toalha embalando o pão ao ombro, os bombons no bolso, bebeu o suco todo, notou a nossa presença, soltou uma gargalhada, jogou a garrafa no mato e disparou sentido cenáculo.
_Tem razão, esse menino é doidinho de pedra.