Sempre falei e, sempre vou falar, que sou um homem que foi criado por mulheres, numa escala de doze, oito, de tudo que aprendi na vida, foi com mulheres.
Nunca vou me envergonhar em assumir isso, ao contrário do que se pensam por aí, não são pessoas inseguras, essas pessoas criadas por mulheres, nem tem eles, propensões à feminilidade, não mesmo, eles crescem cavalheiros e, jamais farão mal ao sexo oposto.
E, depois daqueles oito anos de ditadura feminina na Casa da Infância do Menino Jesus, encontrei no pavilhão 14 do Educandário Dom Duarte, o pior tipo de casal do mundo.
Para cuidar dos 45 meninos, com idade entre sete e dezessete anos, a função era educar e proteger e eles sequer eram educados para o cargo.
Espancavam, ignoravam e os expunham à trabalhos escravos, o Odilon era analfabeto, a esposa Ana, sorria e achava graça do fato do marido andar com um revólver à mostra, a maioria dos meninos achava que, dos dois, ele era o pior, para mim, ela era tão ruim quanto, se ela quisesse, poderia ter mudado tudo aquilo, uma das piores mulheres que eu já tive o desprazer de conhecer, a dona Ana.
No colégio, essa época foi conhecida como a “época dos carrascos”, eu cheguei em 1977, os outros membros do sexteto infernal já sofriam aquilo a mais de cinco anos.
Tudo aquilo fazia com que os meninos do 14 ficassem unidos, a revolta crescendo todos os dias, mais dia ou menos dia, a bomba explodiria, era, portanto, um enredo com um final mais que provável.
Só provável mesmo, quis o destino que, no pavilhão 24, no outro extremo das terras do Educandário, uma tragédia acontecesse na segunda metade do mês de novembro de 1979, esse evento mudou os rumos de toda história.
O Celso, que tinha a mesma idade minha, 12 anos, acompanhado dos amigos de pavilhão, desceram para o lago e acabou afogado, larga, foi a repercussão do caso na imprensa, quando um batalhão de repórteres invadiu o colégio e começaram as perguntas acerca do caso, souberam de mais casos, de descasos, de castigos, de flagelos, de humilhações e de todo tipo de maus tratos que sofriam os internos do Educandário, tudo direto no ventilador.
Como consequência, a diretoria caiu, com ela os carrascos juntos, livres do opressor, os meninos do lar 14 firmaram um pacto, se alguém encostasse a mão em um deles, todos reagiriam.
Dois meses depois, fomos apresentados ao novo casal de laristas do pavilhão 14, era um homem opulento de barba, media uns metro e noventa para mais e uma mulher magrinha, de estatura média de mulher, olhos verdes cativantes e uma boca pequena, feições suaves como as de uma fada.
Mal-acostumados que estávamos, paramos na descrição do homem, que era forte, à primeira vista seria uma volta à ditadura, imaginamos que daria trabalho derrubar aquele homem, mas como estávamos em número maior, não custaria tentar.
O casal tinha um filho de dez anos, tirando o tamanho, o resto era a cópia do pai.
A moça deu um passo à frente e se apresentou, assim que ela começou a falar, todos os meninos que estavam na frente do pavilhão se sentiram aliviados, toda a expectativa que tínhamos foi ao chão, se chamava Dulce, o marido dela era Claudio e o filho Israel, falava de modo seguro, com sotaque catarinense e, no fim, disse que nos cuidaria como se fossemos seus filhos.
O Claudio, apesar da opulência corporal, era um sujeito calmo que gostava de jogar bola com os guris, pintava quadros e dava bons conselhos, o comando de fato era da dona Dulce, não mandava, pedia com educação e, em hipótese nenhuma, recorria à violência.
Se julgar que a dona Dulce não conseguisse tomar conta de 45 internos, está muito enganado, além desses, ainda tinha o marido e o filho, para ela era tudo filho, qualquer problema que alguém tivesse, ela detectava e resolvia, tudo com naturalidade.
Aprendemos de um tudo com a dona Dulce, artes, amizade e sexo também, sobre esse último, aprendemos sobre círculo menstrual, essa lição foi prática.
Via de regra, a dona Dulce era realmente uma fada, verdadeira personagem de contos de fada e como, na vida nada é perfeito, coisa de três ou quatro dias a cada mês, por conta das regras, ela sofria uma espécie de mutação na sua personalidade, dir-se-ia que ela entrava em modo demo, qualquer cair de um alfinete, a irritava profundamente, até a voz ficava diferente.
Nesses tais dias, o pavilhão 14 se quedava num silêncio de hospital, qualquer bem-te-vi que ousasse cantar por perto, era expulso a pedras, lá no campo, se se fizesse um gol, por mais bonito que fosse, não se comemorava.
Numa bela tarde, estavam na área do pavilhão, um grupo a esperar uns outros que vestiam os tênis, no grupo que esperava, estavam o seu Claudio e o Israel, os que se ajeitavam faziam o máximo para não fazer barulho, a dona Dulce estava na cozinha num mau humor de cão.
O Israel, à exemplo do pai, era um emérito peréba, pegou a bola e cismou de fazer embaixadinhas, todo mundo sabe, bola no pé de peréba é uma arma, na primeira levantada, a bola foi de encontro à janela do segundo dormitório, o vidro se espatifou.
A vontade de todo mundo era correr, a surpresa foi tão grande que ninguém se mexeu do lugar, esperando a voz modificada, que viria da cozinha, todo mundo encolhido de medo antecipado, a voz veio:
_. Está vendo só, o que dá, essa merda de futebol???Na próxima meia hora ninguém sai daqui ...meia hora.
No meio da área havia uma enorme mesa com tampo de Madeirit com quatro banco grandes, onde ela dava as lições de casa, em silêncio, cada um achou um lugar e se sentou.
Algum dos meninos achou que o castigo não se estendia ao Claudio e ao Israel, pelo fato de eles serem o filho e o marido da moça, cochicham isso.
O Israel disse que, nem por um decreto, ele se levantaria dali o Claudio raciocinou uns segundos, na cabeça dele foi assim:
Afinal de contas, não faz sentido, eu, o homem da casa ficar de castigo, que raios...eu não sou menino, sou homem, pensado isso, encheu-se de coragem e se levantou do banco, o movimento provocou um ranger de madeira, de lá de dentro a voz gritou mais alto:
_Claudio, se você sair daí, vai ficar mais uma hora.
_. Que isso querida, estava só me ajeitando aqui.