A cama que eu dividia com a garota que eu amava não passava de duas camas de solteiro empurradas juntas para que pudéssemos fingir que tínhamos uma cama para nós duas.
As vezes, quando nos movíamos em meio ao sono, nossas camas se separavam uma da outra e nós acordávamos com esse buraco entre nossos corpos.
Ontem a noite, ela me achou chorando na cozinha, sentada no piso frio no meio da madrugada, tudo na nossa casa era pequeno, e meus pés se encolhiam para não tocar do outro lado da parede. Como eu disse, tudo na nossa casa era pequeno.
Ela me viu, e me ofereceu suas mãos como alguém oferece um copo de leite com mel.
Mas minha tristeza requeria algo a mais do que seu amor terno.
Eu chorava, e chorava com maior frequência na minha vida, e não porque minha vida não era mais excitante ou perigosa.
Eu chorava porque era grata por minha namorada nunca ter sido estuprada.
Eu era grata por que sua boca nunca sentira o gosto de cinzas, mas ás vezes, é tão solitário sentir-me inútil sozinha.
Quando eu falo que ainda sinto o fantasma do toque “Dele” no meu corpo os olhos dela são como céus nebulosos e cheios de pena. Pena, dó, compaixão, piedade, condolência...
Pena...
A emoção que se banqueteia enquanto fala sobre os famintos.
Ela não tem de deixar o cinema quando há uma cena de abuso; “aviso de gatilho”, essas palavras não fazem sentido pra ela; clamar a palavra “sobrevivente” nunca segue com vergonha...
O mais difícil no dia dela é escolher o que fazer para o café da manhã.
Sofrer não uma competição, quem sofreu mais ou menos no final, não importa. Não há prêmio para o vencedor.
Mas não há nada de “romântico” nas cicatrizes do meu corpo, mas há um padrão escrito, uma letra, numa língua que só quem sabe o que é temer um quarto escuro e um toque forçado sabe ler.
Eu vou ao mercado e cada homem no corredor usa a mascara do rosto “Dele”.
Eu não posso fazer amor com ela com as luzes apagadas.
Como eu explico pra ela que eu preciso das luzes acesas?
Como eu explico pra ela que chorar e fazer sexo as vezes parecem a mesma coisa?
Como eu explico pra ela?
Mas amar alguém é quase como inventar uma língua nova.
É tornar ela o porão em dias de tempestade. Um lugar seguro.
É tornar suas mãos pra mim como quem pergunta e tornar suas mãos para longe quando a resposta é não.
Nessa nova língua, nos apagamos “pena” e trocamos por “empatia”.
Eu não preciso que ela se desculpe, eu preciso que ela me ouça.
E nada disso é fácil, nada disso nunca é fácil.
Mas “ser fácil” e “valer a pena” não são sinônimos.
Então, quando nossas duas camas se separam, nos acordamos.
No meio da noite, nos acordamos e empurramos nossas duas camas juntas de novo.