Por trás da janela
Victoria C
Tipo: Conto ou Crônica
Postado: 16/01/19 22:36
Editado: 17/01/19 22:27
Avaliação: Não avaliado
Tempo de Leitura: 11min a 14min
Apreciadores: 3
Comentários: 3
Total de Visualizações: 848
Usuários que Visualizaram: 11
Palavras: 1766
Não recomendado para menores de dezesseis anos
Capítulo Único Por trás da janela

Os olhos são as janelas para a alma.

- Edgar Allan Poe

23/04

06:00

Logo pela manhã quando acordei notei que o ambiente estava mais frio e uma luz incidia sobre o meu rosto, olhei para a janela e a mesma estava entreaberta. Alguém teria entrado? Ele teria entrado? Ao invés de fechar a janela, peguei o meu binóculo e passei a observar a casa sem número, as persianas estavam fechadas como sempre e apenas folhas secas e mortas pairavam no gramado do jardim. Não havia nenhuma movimentação aparente, mas tudo isso muda quando a noite chega.

00:00

Todos já dormem. E mais uma noite eu retiro o meu binóculo de dentro da gaveta da minha escrivaninha que fica do lado direito da cama e sigo para a janela. Diferente de hoje mais cedo ouço o ronco do motor na garagem da casa sem número. Posso não enxergar, mas sei que o morador de lá abriu a porta da garagem que dá acesso à sala de visitas, e agora percebo que as minhas suspeitas estavam corretas, a persiana de uma das janelas não está completamente fechada, e desse modo consigo ver um ponto de luz saindo dali. A luz foi acesa. Avisto um vestido branco e duas pernas alvas correndo pela casa, mas não há gritaria, ou talvez eu esteja muito longe. Temo em descer e ir até lá, pois, não sei se voltaria. Além do mais preciso ser mais cuidadoso depois do incidente com a minha janela. Ainda consigo ver o tecido branco esvoaçando pela sala da casa de frente com a minha, mas agora ele começa a tomar outra tonalidade, tornando-se de um vermelho-escuro e chegando até as pernas da infeliz que ali se encontra. O que está acontecendo? Não consigo ficar observando por mais tempo. Meu coração acelera. A respiração se torna descompassada. E agora perco a visão. Não sei por quanto tempo fiquei com os olhos fechados, mas quando volto a olhar para a janela da casa sem número, as persianas estão fechadas. Será que fui descoberto?

24/04

07:00

Não durmo desde o dia anterior, na verdade, os meus olhos não conseguem fechar, preciso ficar vigilante para qualquer coisa que acontecer. Estive mais cedo, depois do ocorrido, observando a casa sem número e não consegui captar nada, tudo parece está em uma tranquilidade absoluta. A não ser pelas flores do jardim que parecem gritar por água, mas já estão murchas e mortas, não posso salvá-las. Decidi passar o dia todo aqui sem sair para qualquer lugar, assim posso ver que horas ele entra e sai de casa. Mas continua sem movimentação aparente, a casa parece assim como o jardim sem vida, estática, desbotada. E enquanto observo tudo começa a ficar manchado, a minha visão está indo embora novamente. Vermelho. Branco. Escuro. Não sei o que aconteceu, provavelmente desmaiei, acordei agora e já é noite, todos parecem dormir, exceto eu e o meu vizinho da casa sem número. Não sei quando ele saiu ou entrou, mas as persianas foram trocadas por cortinas finas que não impedem de olhar o que acontece lá dentro, eu acho que ficou mais visível, na verdade. A luz está acesa. Alguém passa correndo em frente, mas um braço forte puxa seus longos cabelos jogando quem quer que seja no chão, movimentos que parecem chutes são feitos pela pessoa que está caída e param subitamente. Os meus olhos começam a fechar, eu tento resisti, dessa vez eu preciso saber o que acontece ali. Mas meu cérebro não me obedece e antes de cair no breu vejo um rosto na janela da casa sem número, na minha direção, mas agora não posso fazer mais nada. Escuro.

27/04

23:00

Passaram-se três dias desde o ocorrido, eu decidi permanecer apenas no meu quarto. Sozinho. No silêncio. No Escuro. Não tenho observado mais o que ocorre na casa sem número, pois, acredito que algo está ocorrendo aqui, na minha casa. Hoje assim que acordei e abri a gaveta onde guardo o meu binóculo, o objeto estava estilhaçado e com manchas vermelhas em algumas partes, não tive coragem de pegar, na verdade, eu não sei o que fazer. Algo me assombra. Será que estou sendo perseguido? Ando de um lado para o outro no quarto, quase fazendo uma marca no chão, na esperança de que apareça alguma solução, pois, não sei o que devo fazer. Devo ir para a janela ou não? Como não tenho opções, apenas paro de pensar sobre o assunto, ponho a minha mão debaixo do colchão da cama e tiro o meu antigo binóculo que antes tinha a mesma função de agora, mas já está desgastado. Cortina meio aberta, o binóculo já está posicionado sobre os meus olhos. Sento-me em uma posição estratégica, na qual tenho uma ampla visão da casa sem número e posso me esconder rapidamente caso aconteça algo. Não vejo nada, apesar de o tecido ser quase transparente e a luz está acesa, parece não ter ninguém na casa. No entanto, uma música de jazz ecoa em alto e bom som da casa do meu vizinho, assusto-me e fico um pouco mais escondido. Não é possível que ele esteja dando uma festa a esse horário. Fico me perguntando o motivo de ninguém ter aparecido nas janelas de suas casas para reclamar do barulho. Todos ainda dormem e apenas eu sou capaz de ouvir. A música começa a entrar de forma inquietante em meus ouvidos e penetrar na minha cabeça, deixo o binóculo cair no chão e tapo os meus ouvidos, mas a canção não para, ainda assim posso escutar. Agora não escuto apenas a música, vozes surgem na minha cabeça. Eu tento gritar mais alto que tudo isso, mas não consigo, não posso, algo prende a minha garganta. Caio de súbito sobre a superfície de madeira do meu quarto. Perco a ar e tudo se torna escuro de novo. Não escuto mais nada.

28/04

XX:XX

Não lembro do que se sucedeu depois do que ocorreu ontem, mas acordo na minha cama. Uma luz invade o meu quarto e quando olho para frente percebo que a janela está aberta e não apenas com a cortina entreaberta. Levanto rapidamente e corro para fechar, tento controlar a minha respiração, estou muito ofegante, e com razão, penso novamente na possibilidade de ele ter entrado aqui no meu quarto. Olho para o relógio de parede que fica acima da minha cama e não sei por quanto tempo fiquei desacordado. Eu dormi? Ainda me sinto cansado, a minha cabeça dói e agora estou com mais medo. Começo a olhar o quarto todo e não vejo nada fora do lugar, também não consigo encontrar o binóculo velho que eu estava usando ontem. E então me lembro do binóculo da escrivaninha e quando abro a gaveta, encontro o binóculo antes quebrado e sujo, em perfeito estado. A minha mente parece brincar comigo. Olho novamente para o relógio e espera… Quanto tempo passou? Não pode ser, o objeto feito parar marcar o horário indica que já está de noite. Vou em direção a janela e arrasto a cortina para o lado, através da vidraça consigo ver a noite, fria e escura. A dor em minha cabeça se intensifica. São batidas, parece que algo está perfurando o meu cérebro. Grito de dor e então a mesma começa a abrandar, ainda atordoado volto para cama, deito-me e fecho os olhos. Tentei dormir, mas não consegui. Os meus olhos pairam e ficam fixos na minha janela. Impulsivamente retiro o binóculo da gaveta e vou até o meu lugar de todos os dias e noites. Mas antes de chegar mais perto algo me faz parar, diferente dos outros dias as cortinas da casa sem número estão abertas e através da janela de vidro posso ver o que acontece lá dentro. O mesmo jazz da noite anterior ecoa pela casa e chega até os meus ouvidos, mas hoje de forma lenta e o meu vizinho está próximo da janela com o olhar vidrado para a minha casa, como se soubesse que eu estava o vigiando, seus olhos sobem até a minha janela e começam a fitar como se pudesse me enxergar, sem reação fico apenas quieto no escuro. Imóvel. Mas as vozes voltam, elas gritam e agora o jazz invade novamente os meus ouvidos, entrando na minha cabeça, querendo se alojar na minha mente. Cabeça. Mente. Os meus olhos começam a pesar, assim como o meu corpo e agora eu não enxergo mais nada. Escuro.

XX/XX

XX:XX

Não sei quanto tempo estou acordado. Tentei dormir, mas a verdade é que eu não consigo. Às vezes tudo se torna um breu, o tempo começa a passar mais rápido, mas já não sei se é apenas a minha mente. Tudo está em silêncio, não ouço ruído, exceto o som da minha respiração e o tic tac insistente do relógio de parede. Caminho lentamente para a janela, torna-se fundamental eu descobrir o que se passa na casa sem número. As lentes do binóculo estão manchadas e arranhadas, deve ser devido às quedas que ele levou, mas ainda assim consigo enxergar. A noite ainda não chegou, mas logo a lua aparecerá, por isso preciso ficar vigilante, nada pode passar despercebido. Não sei quanto tempo passou, mas já está tudo escuro, olho para o relógio e os ponteiros sinalizam que não demorará para amanhecer, mas nada aconteceu. Minutos e horas se passam. Então ouço uma música no fundo, é o mesmo jazz das noites anteriores. Não sinto dor, mas a possibilidade de isso acontecer faz com que meu corpo se retraia diante a música. Sou surpreendido pelo carro do meu vizinho saindo da garagem, é a primeira vez que o vejo sair, então o carro ganha distância até dobrar a esquina. Agora é apenas eu, o meu binóculo, o som de jazz ainda ligado e a casa sem número sozinha. É a minha chance. Ando silenciosamente, como se alguém pudesse me ouvir, consigo sair do quarto, desço a escada e então saio de casa. Aqui fora a música parece ficar ainda mais alta e mesmo assim ninguém ouve. Corro até o outro lado da rua, os meus pés descalços tocam o chão frio da rua, então paro em frente a porta do meu vizinho. Coração acelerado. Respiração descompassada. O jazz começa a tocar do início novamente. Coloco a minha mão sobre a maçaneta da porta da casa sem número, mas antes que eu consiga girar para entrar sinto algo na minha cabeça. As vozes voltam, as batidas retornam, algo parece querer entrar no meu cérebro, eu acho que dessa vez conseguiu e então tudo se torna escuro.

❖❖❖
Apreciadores (3)
Comentários (3)
Postado 17/01/19 00:26

Olá!

Quero dizer que fiquei bem angustiado com a angústia do "narrador". Caramba, essa pessoa sofreu muito com os mistérios da casa sem número. Ele não teve paz um segundo se quer. Foi torturado por suas angústias a todo momento. Isso é muito sinistro!

Olha, sem medo de errar, achei o enredo e a narrativa muito bons. Na verdade, acho que esse final podia ser deixado pra lá. Pelo próprio texto, já dava pra perceber que o personagem principal estava surtando em suas loucuras. E dava pra sentir muito bem o sofrimento dele. Que coisa impressionante!

No mais, o texto está bem escrito de forma geral. Eu revisa-lo-ia para corrigir alguns problemas gramaticais, como a pontuação e o uso incorreto da palavra "mesmo" (tem um tópico no fórum aqui do site que mostra como ele deve ser usado.

Parabéns e obrigado por compartilhar!

Postado 17/01/19 18:19 Editado 17/01/19 22:04

Muito obrigada pelo comentário. Em relação ao final, ainda é algo que eu, realmente, estou pensando em manter ou não. Apesar de eu ter uma ideia esboçada sobre o que acontece ao personagem, os leitores precisam criar seus próprios desfechos também, então possivelmente removerei. Muito obrigada pelas sugestões, posteriormente estarei fazendo as correções. Fico feliz que tenha gostado.

Postado 17/01/19 00:31

Esse final me deixou inquieto. Não sei se vc nã achou um desfecho melhor.Não sei o que aconteceu, mas sinto que é proposital do autor, brincar com o nosso psicológico durante a leitura. Parabéns, sua abordagem dinâmica e crescente conseguiu criar uma mistura de mistério e loucura aterrorizante, intensificando as duas coisas ao decorrer da historia como nunca vi igual. Me lembrou a estrutura de uma creepy pasta, daquelas memoráveis.

Acho que também enlouqueci na medida que a personagem enlouquecia. Me senti muito imerso na cabeça dele,e a narração em primeira pessoa ajudou com certeza. Senti como se a história tivesse anulado todo o som da minha casa, e de repente eu estava lendo em total silêncio.

Acho que o seu texto, assim como os melhores, está sujeito a diversas a interpretações, e eu não vim estragar a de ninguém aqui. Respeito muito sua escolha de estrutura aqui, achei que os horários e as datas agregaram muito o suspense em geral e até deram uma certa liberdade criativa para o autor causar mais nós nos nossos estômagos.

Enfim, de vdd gostei da sensação que o texto, seja a historia e seja a arrumação, desenho, dele. Obrigado pelo suspense psicológico.

Postado 17/01/19 18:28

Muito obrigada. É muito pertinente que você tenha citado em relação as várias interpretações que se possa ter com o desfecho da história, pois, é algo que me preocupou muito quando inseri o final (foi intencional), mas isso me preocupa na medida em que a pessoa que está lendo não consiga imaginar seu próprio desfecho. Fico feliz que você tenha gostado.

Postado 28/01/19 23:49

A sua ideia é deveras incrível e a maneira que você a desenvolveu, é ainda mais. Acredito que a ferramenta de brincar com o psicológico do leitor durante a leitura é uma maneira que inseri-lo ainda mais dentro da atmosfera que se encontra o narrador. Através disso consegui visualizar, sentir e até mesmo pensar como ele, sendo que, a cada palavra lida, minha mente ia sendo guiada, como se eu fosse uma espectadora convidada a participar da história.

Obrigada por compartilhar esta obra conosco. Ela está muito bem escrita e magnificamente desenvolvida. Sua escrita é maravilhosa!

Meus parabéns ♡

Postado 01/02/19 17:55

Ficou muitíssimo grata pelo comentário e feliz também por você ter vivenciado de tal maneira a leitura. Obrigada! :)