O quadro desbotado e mal ajustado das pessoas que amava, a foto da família que há tempos não via, as lembranças na cabeça escurecida. Lembrava de quando detinha olhos claros, já pretos e queimados.
Segurava a bebida avermelhada, magenta e alcoólica. Gravitava o cristal para sentir o odor, ferroso e oxidado. Um gole de cada vez, vagarosa, aproveitava o tempo que as badaladas lhe concediam.
Fitava o vento, como quem espera por uma ligação. Não a receberia, sabia, ninguém havia do outro lado da linha.
Alterando entre os dedos enrugados e o labirinto de sua palma, acariciava o braço da poltrona com cuidado e delicadeza, só para sentir as curvinhas do couro desgastado. Deteve-se por um momento na ironia.
Uma lágrima salgada escorria pela pele engruvinhada de seu rosto. Com um último gesto de auto piedade, olhou para o quadro incompleto. Com o lenço branco limpou a gota de seus olhos escuros e dormentes.
Levantou da poltrona sentindo o cansaço do corpo. Com esforço chegou à varanda, sofria e usava toda sua força para não despencar com o vento forte e gelado que lhe batia.
Num gesto forçado, e talvez até rude de sua parte, olhou para as estrelas presas ao breu, desejava ver a queda de uma, não a viu. Convenceu a si que talvez não haviam mais tantas estrelas assim, não como dantes, as melhores haviam de ja ter caído.
Com excesso de profundidade respirou, expirou, e sobre o manto escuro da noite suspirou. Deixou o cansaço tomar conta de seu corpo, usufruindo de seu último fio de força para sorrir. Não sentia mais o sussurro do vento, não via decadência nas estrelas do céu ou sentia cheiro de sangue em vinho. Não ouvia as ironias da vida. O breu a absorvera, e agora se juntara ao quadro.