É escuro e chove, mas é terça-feira, dia útil de trabalho. Sou acordado por um sacolejo suave e cheio de boas intenções, afinal não podemos nos atrasar. Ela sempre acorda muito mais disposta do que eu, de repente por estar ainda nos primeiros meses no novo emprego e não ter se enjoado da rotina de apertar botões. Mas não importa; ver seu sorriso logo de manhã cedo sempre é muito motivador.
Então, levanto-me, abro a janela e vejo um rio caindo do céu. Lamento pelo tempo estar assim e sou reprendido por estar me lamentando novamente por conta das condições climáticas. Decido parar de reclamar, até porque não tem como mudar as vontades de São Pedro e não quero estragar aquele café da manhã que sempre me espera na mesa e preparado pela mulher que amo. Sim, é incrível a disposição que ela acorda.
Passo geleia no pão e ela diz para eu não exagerar, pois, senão, me tornarei diabético. Caramba, sei que a genética é poderosa, mas não quer dizer que adoecerei por meus parentes terem adoecido. Mas é melhor maneirar mesmo, até porque sempre assim o fiz e o farei. Minha gula descontrolada por doce foi domada há muito tempo.
Saio de casa de carro, pois, em dias de chuva, é assim que tem que ser. O problema é que é assim para todo mundo e as ruas estreitas ficam lotadas. Ninguém quer se molhar e não se importa em ficar trinta minutos a mais no trânsito. Totalmente compreensível. E, nesse tempo parado, sempre tento escrever aquela poesia inspirada nas músicas do Chico Buarque. Obviamente, hoje, não seria diferente. Coloco aquela música que tanto gosto, chamada “Construção”, e começo a rimar. Começo e paro.
Como rimar se meu vocabulário é tão pequeno? Ora, na verdade, isso não é um problema, pois Chico Buarque não usa palavras difíceis para rimar. Ele simplesmente rima. Mas o meu problema é que rimo “coração” com “manutenção”, “operação”, “solicitação”, palavras do meu cotidiano de engenheiro.
Não que não goste dessas palavras, mas gostaria que elas não saíssem do meu escritório. Sei que isso é praticamente impossível, pois até quando saio para jantar com os meus amigos, o assunto é obra, é prazo, é cliente, visto que eles são, também, meus colegas de trabalho. Ou seja, tudo está vinculado a minha vida de cálculos e resolução de problemas alheios.
Portanto, nesse momento de pé na embreagem e de mão na caneta, queria poder escrever e homenagear aquela mulher maravilhosa que me acompanha há muito tempo. Mas é complicado, muito complicado, assim o fazer, pois a cabeça está programada para trabalhar e trabalhar. Não posso culpa-la, pois foi assim que a moldei. No entanto, que ela enche o saco é verídico.
Carro estacionado, é hora de bater o ponto. Planilhas e planilhas. Reuniões e reuniões. E fim do expediente. Na última vez que olhei pela janela, era escuro e chovia. Agora, continua igual, mas são nove horas mais tarde. Se não fosse o relógio, jamais diria que o tempo tinha passado. É tudo tão igual que parece que não fiz nada, mesmo com a cabeça que não para de latejar. Assim, fica complicado dirigir e, imagina então, escrever.
Coloco-me na rua novamente e fico trancado novamente. A chuva fez o rio que corta a cidade transbordar e alagar duas pistas das três disponíveis. Mais do mesmo do descaso do governo e da porquice da população. Assim, pé na embreagem e mão na caneta novamente. Quem sabe agora sai alguma rima:
Sempre linda, sempre com firmeza!
Você se coloca sobre a mesa
E se perde no meio dessa dureza
De viabilizar obras na empresa.
É, definitivamente, não tem nada a ver com Chico Buarque. Ou tem, mas minha dor de cabeça constante e as buzinas não me permitem raciocinar e verificar se tem traços da genialidade do Hollanda. De qualquer forma, esse poema não me agrada, pois vejo nele tudo o que queria esquecer ao escrever.
Em casa, de banho tomado e na frente do fogão, preparo a janta para minha amada e para mim. Gosto de cozinhar, de mexer a comida na panela e fazer um suco refrescante. Mas com essa correria, tenho me limitado a fazer arroz e bife. Amamos essa comida, mas come-la sempre se torna cansativo. Quem sabe, nesse próximo final de semana, passamos ao supermercado e compramos alguns ingredientes diferentes. Quem sabe, haja algo de diferente no mercado perto de casa, pois ir até ao hipermercado, no centro da cidade, é enfrentar o trânsito infernal também nos dias de descanso.
Ainda é escuro e ainda chove. Queria voltar a praguejar contra esse tempo, mas não fá-lo-ei, por motivos já explicitados. Então, o melhor é deitar e dormir. Hoje o dia foi igualmente puxado e igualmente entediante. Não há porque continuar insistindo nele. Grudo na minha amada, lhe desejo boa noite e volto a dormir.