αποσύνθεση
Severo V
Tipo: Conto ou Crônica
Postado: 11/06/18 13:35
Editado: 11/06/18 14:07
Gênero(s): Poema
Avaliação: 10
Tempo de Leitura: 4min a 5min
Apreciadores: 4
Comentários: 3
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Palavras: 676
Livre para todos os públicos
Notas de Cabeçalho

Este poema expressa tão somente uma das várias perspectivas que perpassam a minha alma. Naturalmente, trata-se de uma parte de um todo, de um corpo poético. Uma fase sombria aqui manifestada; uma fase sombria que abre portas para outros horizontes. Pois na vida caminhamos por uma floresta e a todo tempo diferentes prismas nos são possíveis. De modo que o cúmulo do ressentimento ou da amargura; ou o cúmulo da melancolia e da doença podem ser indicativos de uma abertura para o novo. Portanto não leiam nada do que escrevo como sendo definitivo; mas imaginem vírgulas após todo e qualquer ponto final.

Capítulo Único αποσύνθεση

Inerte, já sem amigos, já sem sexo, já sem dinheiro,

horizontes, queixas, medo da morte, nada.

Sigo cada dia — presente absoluto

esta alma carcomida tem olhos cansados.

Este corpo apodrece, progressivamente.

Triste contraste entre este fiasco, com tendências à impotência,

e os corpos da publicidade (tão tristes quanto este),

porém mais bem representados, cobertos pela camuflagem,

pela maquiagem do ilusório, do aparentemente perene.

E eu só tenho dezenove anos.

Quem dirá se eu chegar aos quarenta.

Erguerei minhas rugas a título de troféu.

Nenhum creme hidrante para disfarçar a decadência.

Os pulmões putrefatos, o sangue expectorado.

Uma bolsinha de soro acoplada à barriga, nas proximidades dos rins.

Remédios por toda parte.

Quem sabe um gato, ou dois, ou três.

Quem sabe um cão, ou nenhum.

Quem sabe uma mulher, ou um demônio a mais.

Quem sabe uma neurose, ou um demônio a mais.

Quem sabe três gatos, um cão, uma mulher, uma gangue de neuroses e um bando de demônios.

Mas certamente a solidão seria preferível a qualquer relação com qualquer mulher desse mundo.

Não seria capaz de imacular a áurea existência feminina com as torpezas de minha degenerescência.

Prefereria apodrecer sozinho. Sem pai, nem mãe. Sem testemunhas nem padre.

Dissolver-me no fluxo etéreo do Todo, como uma pipoca.

Que não vingou, apenas estourou — e fim.

Sou triste de todos os modos possíveis

e passo os dias trancafiado no quarto.

Rodeado por livros, rodeado pela morte.

Enquanto balas perdidas estouram crânios

ali no Rio de Janeiro ou em São Paulo ou em Cingapura.

Neste mês de Junho comecei a escrever meu décimo romance.

Meu décimo romance abortado.

Jamais chegarei ao nível de um Dostoiévski.

Não serei capaz de retratar nossos tempos,

pois fui esmagado por nossos tempos.

Esmagado, dilacerado, vencido já no berço,

e se tivesse nascido em outro contexto,

é possível que já estivesse morto, ou preso, ou "vivo" —

"vivendo" e "fazendo coisas" e "consumindo"

e "me qualificando para o mercado de trabalho"

e "construíndo uma família e um futuro" e "coisas assim".

Não se trata de vitimismo. Trata-se de assumir que, enfim,

sou agente apenas em certa medida, e protagonista também,

apenas em certa medida, mas na medida maior, na medida geral,

sou peça e engrenagem insípida, insignificante,

e posso ser esmagado a qualquer momento por potências dominadoras.

A tirania nossa de cada dia...

Sou componente da Decadência Maior — da dissolução de todos os valores,

do fim dos tempos, em suma.

A menos, é claro, que tudo isso seja só um pretexto para um Progresso da Humanidade

logo Ali, Ali Na Frente, No Futuro, Tudo Com Letras Maiúsculas, ESPERANÇA,

PROGRESSO E ASCENSÃO DO TODO, E COMUNHÃO CELEBRADA POR FIM

APÓS SÉCULOS DE GUERRA E MATANÇA E MALDADE E ESMAGAMENTO DE MINORIAS...

Sim, a Felicidade, a Grande Felicidade, posso vê-la, e não faço parte dela,

pois terei sido apenas uma engrenagem, um escravo da espécie,

para que a espécie, por fim, alcance um tal nível de evolução.

E então talvez hajam máquinas trabalhando por nós

e colônias em Marte, e coisas assim, revolucionárias,

e tudo isso, quem sabe?, seja lá muito lindo, interessante,

mas eu não estou interessado em servir a uma causa dessas.

Não estou interessado em ser útil ou servir.

Eu quero que as autoridades se explodam.

Eu quero viver em paz e morrer em paz;

eu quero que as pessoas possam viver em paz e morrer em paz;

e para tanto travarei guerras comigo mesmo até desistir de tudo,

até não saber mais o que eu quero, nem sequer o que significa paz ou guerra,

até me deitar extenuado de tantas aspirações e delírios ignóbeis,

até me embriagar por fim, pois o esquecimento é a única misericórdia possível;

ao passo que uma consciência que não cessa de se expandir se equipara a uma grande boca gulosa que não para de deglutir e mastigar emitindo um barulho nojento de uma coisa grudenta e orgânica e viva e portanto em vias de morte e decomposição — retornando por fim ao caos original, ao mistério que não alcançamos sentados defronte ao computador maquinando teorias e sistemas...

❖❖❖
Notas de Rodapé

“Quando a tecnologia e o dinheiro tiverem conquistado o mundo; quando qualquer acontecimento em qualquer lugar e a qualquer tempo se tiver tornado acessível com rapidez; quando se puder assistir em tempo real a um atentado no ocidente e a um concerto sinfônico no oriente; quando tempo significar apenas rapidez online; quando o tempo, como história, houver desaparecido da existência de todos os povos, quando um esportista ou artista de mercado valer como grande homem de um povo; quando as cifras em milhões significarem triunfo, – então, justamente então — reviverão como fantasma as perguntas: para quê? Para onde? E agora? A decadência dos povos já terá ido tão longe, que quase não terão mais força de espírito para ver e avaliar a decadência simplesmente como… Decadência. Essa constatação nada tem a ver com pessimismo cultural, nem tampouco, com otimismo… O obscurecimento do mundo, a destruição da terra, a massificação do homem, a suspeita odiosa contra tudo que é criador e livre, já atingiu tais dimensões, que categorias tão pueris, como pessimismo e otimismo, já haverão de ter se tornado ridículas.”

Martin Heidegger (1889-1976), em Introdução à Metafísica

Apreciadores (4)
Comentários (3)
Postado 11/06/18 20:18

Isso foi... Libertador...

É como se o senhor fizesse uma biópsia em meu âmago e extraisse a essência dele a cada corte/estrofe com a mesma maestria com a qual nos degeneramos e nos perdemos enquanto espécie, a despeito das descobertas, dos "avanços", do "progresso".

Esta é de longe uma das contribuições mais significativas a esta Academia; uma obra deste patamar requer um grau de conhecimento, reflexão e destruição iminente acima da média... Acima do limite que muitos de nós, leitores, podemos, queremos admitir quando avaliamos a Humanidade e a Sociedade/Civilização pelo enegrecido filtro da realidade.

Nem tudo é maligno. Nem tudo é deplorável. Nem tudo é cruel. Mas, o que é, o que há... É mais do o suficiente. Tão, tão mais...!

Perdoe-me por tão pueril comentário; sinto-me deveras ignorante (e de fato o sou) ao tentar externar e debater sobre o quão impactante e grandioso este poema me é. A palavra "extraordinário" foi criada para tentar definir/descrever criações desta magnitude. Sinto-me tremendamente honrado, inspirado e agradecido por ter podido ler uma obra tão impressionante, visceral e esclarecedora!

Muitíssimo obrigado por compartilhar algo tão indescritível conosco, Sr V! E meus mais sinceros, entusiasmados e incessantes parabéns... E meus pêsames,

por fim...

Atenciosamente,

Um ser decadente desde o ventre antes do ventre, Diablair.

Postado 24/10/18 00:39

EU NÃO POSSO ACEITAR O FATO DE QUE ESTE É O SEU ÚNICO TEXTO!

Quem caralhos é Dostoievski? Que merda de obra dele que eu conheço? Absolutamente nenhuma. Pois são pessoas rodeadas de morte e de pobreza que me surpreendem, me refrigeram, me sustentam e me inspiram, são pessoas que explodem e só. São pessoas que postaram um único texto que provavelmente irá marcar toda a minha existência! E como eu queria ser uma dessas ricas só para publicar esta OBRA DE ARTE MAJESTOSA É VISCERAL e torná-la tesouro nacional...

Pois aqui, está sendo exposto tudo o que somos... As cidades que não aparecem nas TVs, a parte da depressão que ninguém vê, palavras e sentimentos é tonalidades e texturas totalmente desconfortáveis, como um soco na barriga, como um demônio na garganta, que só causa feridas...

Eu não tenho nem palavras Pasa expressar O QUANTO ESTA OBRA ME DEIXOU BOQUIABERTA, tudo o que eu sempre quis gritar e nunca achei palavras para contemplar a ineficiência de meus pensamentos... E aqui está você. Eternizado. Gravado. criptografado e sendo reconhecido, pois importa sim em qual contexto você esteja, importa pois nele você sobrevive e morde momentos com todos os seus dentes e os faz sangrar por entre a gengiva.

Espero que você volte, pois isso foi uma enxurrada.

Foi tudo.

Tudo.

Incrível.

Surreal.

Estou MUITO EXTASIADA.

"Que não vingou, apenas estourou — e fim." - seremos todos assim?

Postado 13/02/19 00:35

Essa obra me tocou de tal maneira que não é possível colocar em palavras os sentimentos que estão vagando por meu coração. Como descrever algo, quando tudo está bem aí, declamado através destes versos?

Obrigada por compartilhar esta obra incrível conosco!

Meus parabéns!