Inerte, já sem amigos, já sem sexo, já sem dinheiro,
horizontes, queixas, medo da morte, nada.
Sigo cada dia — presente absoluto —
esta alma carcomida tem olhos cansados.
Este corpo apodrece, progressivamente.
Triste contraste entre este fiasco, com tendências à impotência,
e os corpos da publicidade (tão tristes quanto este),
porém mais bem representados, cobertos pela camuflagem,
pela maquiagem do ilusório, do aparentemente perene.
E eu só tenho dezenove anos.
Quem dirá se eu chegar aos quarenta.
Erguerei minhas rugas a título de troféu.
Nenhum creme hidrante para disfarçar a decadência.
Os pulmões putrefatos, o sangue expectorado.
Uma bolsinha de soro acoplada à barriga, nas proximidades dos rins.
Remédios por toda parte.
Quem sabe um gato, ou dois, ou três.
Quem sabe um cão, ou nenhum.
Quem sabe uma mulher, ou um demônio a mais.
Quem sabe uma neurose, ou um demônio a mais.
Quem sabe três gatos, um cão, uma mulher, uma gangue de neuroses e um bando de demônios.
Mas certamente a solidão seria preferível a qualquer relação com qualquer mulher desse mundo.
Não seria capaz de imacular a áurea existência feminina com as torpezas de minha degenerescência.
Prefereria apodrecer sozinho. Sem pai, nem mãe. Sem testemunhas nem padre.
Dissolver-me no fluxo etéreo do Todo, como uma pipoca.
Que não vingou, apenas estourou — e fim.
Sou triste de todos os modos possíveis
e passo os dias trancafiado no quarto.
Rodeado por livros, rodeado pela morte.
Enquanto balas perdidas estouram crânios
ali no Rio de Janeiro ou em São Paulo ou em Cingapura.
Neste mês de Junho comecei a escrever meu décimo romance.
Meu décimo romance abortado.
Jamais chegarei ao nível de um Dostoiévski.
Não serei capaz de retratar nossos tempos,
pois fui esmagado por nossos tempos.
Esmagado, dilacerado, vencido já no berço,
e se tivesse nascido em outro contexto,
é possível que já estivesse morto, ou preso, ou "vivo" —
"vivendo" e "fazendo coisas" e "consumindo"
e "me qualificando para o mercado de trabalho"
e "construíndo uma família e um futuro" e "coisas assim".
Não se trata de vitimismo. Trata-se de assumir que, enfim,
sou agente apenas em certa medida, e protagonista também,
apenas em certa medida, mas na medida maior, na medida geral,
sou peça e engrenagem insípida, insignificante,
e posso ser esmagado a qualquer momento por potências dominadoras.
A tirania nossa de cada dia...
Sou componente da Decadência Maior — da dissolução de todos os valores,
do fim dos tempos, em suma.
A menos, é claro, que tudo isso seja só um pretexto para um Progresso da Humanidade
logo Ali, Ali Na Frente, No Futuro, Tudo Com Letras Maiúsculas, ESPERANÇA,
PROGRESSO E ASCENSÃO DO TODO, E COMUNHÃO CELEBRADA POR FIM
APÓS SÉCULOS DE GUERRA E MATANÇA E MALDADE E ESMAGAMENTO DE MINORIAS...
Sim, a Felicidade, a Grande Felicidade, posso vê-la, e não faço parte dela,
pois terei sido apenas uma engrenagem, um escravo da espécie,
para que a espécie, por fim, alcance um tal nível de evolução.
E então talvez hajam máquinas trabalhando por nós
e colônias em Marte, e coisas assim, revolucionárias,
e tudo isso, quem sabe?, seja lá muito lindo, interessante,
mas eu não estou interessado em servir a uma causa dessas.
Não estou interessado em ser útil ou servir.
Eu quero que as autoridades se explodam.
Eu quero viver em paz e morrer em paz;
eu quero que as pessoas possam viver em paz e morrer em paz;
e para tanto travarei guerras comigo mesmo até desistir de tudo,
até não saber mais o que eu quero, nem sequer o que significa paz ou guerra,
até me deitar extenuado de tantas aspirações e delírios ignóbeis,
até me embriagar por fim, pois o esquecimento é a única misericórdia possível;
ao passo que uma consciência que não cessa de se expandir se equipara a uma grande boca gulosa que não para de deglutir e mastigar emitindo um barulho nojento de uma coisa grudenta e orgânica e viva e portanto em vias de morte e decomposição — retornando por fim ao caos original, ao mistério que não alcançamos sentados defronte ao computador maquinando teorias e sistemas...