O silêncio mortal que tomava conta da noite começava a ser desfeito por pequenos sons de algo se partindo.
Braços e pernas sendo arrancados de mais uma boneca. Uma atenção maior em sua cabeça, apenas separá-la do corpo não parecia o suficiente. Os olhos de plásticos tão vazios quanto aos de seu agressor. Não aguentava encarar por muito tempo aquele rosto inexpressível. Não sem desejar desfigura-lo.
- Isso não é o suficiente... – sua voz saiu em um sussurro rouco. Soltando o que restava das peças em suas mãos.
Com as mãos livres, passou os dedos sobre as cicatrizes do próprio corpo. Alguém já havia tentado lhe fazer o mesmo. Rosto, pescoço, braços marcados e costurados como um boneco remendado.
- O erro foi me manter vivo...
Já houve muitas conversas naquela pequena sala, agora só resta bonecas e manequins destruídos e enroscado em linhas após um ataque de cólera que nunca deveria ter despertado, porém suas amarras não estavam mais presentes para controla-lo.
As linhas ainda manchadas agora em um tom ferrugem, o vermelho já havia oxidado. Um riso escapava de seus lábios, a sanidade não está mais alcançável.
- Era isso que desejavam... Queriam saber meus limites... – um sorriso adornava seu rosto. -Seria uma pena se isso não existisse... – ironizava enquanto caminhava por entre as linhas, os manequins se revelavam ser algo um dia vivo. Pessoas pegas por aquela teia. – Agora sua voz foi para um lugar incapaz de me alcançar. Não existe mais amarras.
As linhas a sua frente eram cortadas com auxílio de um canivete, liberando alguns corpos de suas prisões. Ecoando ao impactar com o chão.
- Nada aqui tem mais vida. Até o vermelho se foi...
Ao canto da sala, um corpo decapitado e suspenso por linhas. A cabeça posicionada ao lado no chão. Uma boneca que compartilhava do mesmo sangue que o rapaz. Sua gêmea brutamente assassinada, quebrando o fio que restava de sua sanidade.
- Não existe ninguém capaz de conter minha ira agora... – recorreu a cabeça com afinidade, encostando a testa a sua. – Você também deseja por isso, não é? Que eu puna aquele que maculou nosso santuário. – sorriu vislumbrando o rosto pálido. – Perdoe-me irmã, mas já não posso continuar aqui. Não há mais linhas me controlando e agora posso te libertar também. – o sorriso morreu ao devolver a cabeça ao chão. – Continue olhando por mim, prometo que não irá se aborrecer.
Enquanto caminhava até uma estante contendo vidros com órgãos em conserva, apenas parou, respirando profundamente, absorvendo os odores cadavéricos misturados com produtos. E em um distúrbio nervoso, pôs a estante ao chão, estilhaçando os recipientes e danificando as peças em conserva.
- Não há perdão! – exaltou-se. - A morte será mais que merecida. Pro inferno tudo!
Cambaleou pelos destroços, recuperando o canivete esquecido. E, aproximando da criança boneca sentada em um banco com seu coelho de pelúcia, a encarou com desprezo.
- Isso tudo aconteceu porque você decidiu fugir. – a acusou enfincando a lamina na perna da boneca já sem vida. – “Corte a cabeça dos traidores”, não é mesmo Alice? – sorriu. – Quanta sorte continuar com a sua no lugar. – ajoelhado em frente a criança, segurou seu queixo e encarou aqueles olhos vazios. – Como pôde se apegar àquele cara? Na primeira oportunidade lhe abandonou. – ciente que não receberia resposta, largou o rosto bruscamente. – Tsc. Como é ter uma morte silenciosa? – pegou a pelúcia das mãos sem vida da criança. Puxando até que rasgasse a cabeça do corpo. – Ele não virá por você.
Sentindo a vista escurecer, cambaleou para trás. Instintivamente levou as mãos a boca ao tossir um líquido espesso levemente escuro.
- Meu tempo está se esgotando... Esse corpo está alcançando seu limite. – sorria prazerosamente ao encarar os resquício em suas mãos. – Quer dizer que não poderemos continuar com nosso joguinho. – sua feição se tornou séria. – Nosso próximo encontro será o último e dessa vez irei matar você.