Fome, medo e nojo: estas três palavras definiam muito bem a atual condição de Ricardo. Já havia perdido as contas de quanto tempo se passou desde que estava trancafiado naquele cômodo totalmente escuro, mal-ventilado e inacreditavelmente fétido, já que não havia onde ele pudesse fazer suas necessidades fisiológicas. O ranço formado pelo acúmulo de fezes e urina, unido ao da imundíce de seu próprio corpo era tamanho que faria o odor de um mendigo parecer perfume.
Isso sem inexplicável cheiro de carniça que empesteava ainda mais o ambiente... A situação de Ricardo era tão degradante que a escuridão chegava a ser uma dádiva em certo ponto. Provavelmente terminaria de enlouquecer se soubesse em detalhes onde (e COMO) estava.
Seu corpo... Ricardo meio que sorriu e chorou baixinho ao se lembrar de como era seu corpo antes daquele inferno. Era robusto, definido, uma verdadeira obra-prima do fitness. Muitas mulheres e até mesmo homens se excitavam ao ver aquele conjunto corporal perfeito que esbanjava virilidade, potência e saúde.
Agora? Era nada mais que uma saco adoecido de pele, ossos e sujeira. Sua barba, cabelos e unhas estavam imensos, dando àquele infeliz um aspecto horrendo e seu hálito desmaiaria um homem facilmente de tão apodrecido. Suas genitálias então, se é que poderiam receber tal alcunha ainda, estavam em um estado lastimável, talvez até passíveis de amputação. Isso se não caíssem por si só.
Mas o pior era a fome. A sua algoz interna, pessoal e barulhenta que consumiu a musculatura de seu corpo e, nunca satisfeita, agora consumia-lhe a vida. Vez ou outra, quem quer que houvesse lhe prendido à traição enquanto voltava da academia lhe fornecia água através de um minguado filete que era esguichado por um buraquinho no teto. Ele tinha que rastejar como um verme naquele chão repleto de mijo e merda até o local onde o precioso líquido se esvaía e sorver cada gota que pudesse.
Depois, era só suportar aquele oco devorando-o por dentro. O desespero que ele trazia a cada ronco que produzia em seu estômago. A angústia de só pensar e sonhar com comida, de desejar comer algo um pouco menos ruim que suas próprias e raras fezes. Suportaria na esperança de que seria alimentado outra vez. Sim, pois a pessoa ou grupo por trás daquela insanidade o servia um prato de comida de tempos em tempos.
Ricardo se lembrava com saudade de cada uma das sete refeições que atacou e fez desaparecer goela abaixo em uma velocidade alarmante: macarrão com almôndegas, linguiças grelhadas, hambúrgueres, ensopado de carne, espetinhos, kibes e bifes à milanesa, tudo em quantidade e qualidade, bem temperado e delicioso. Após cada uma delas, houve um período sadicamente extenso sem quaisquer novas alimentações. Eram dias e dias de uma enlouquecedora espera por qualquer coisa passando pela pequenina abertura na parte inferior da porta, junto com a esperança de que a Polícia de alguma forma encontrasse o cativeiro.
Sim, Ricardo ainda acreditava que iria escapar vivo daquele suplício demoníaco. Mas agora queria mesmo era comer. Queria tanto,TANTO! Sabia que gritar, xingar ou implorar não adiantava. A fome chegava ao ponto do indescritível novamente. E foi poucas horas depois que o momento mais desejado, mais amado, mais sagrado, mais importante daquele seu novo arremedo de vida chegou: a portinhola se abria verticalmente em um rangido de arrepiar a alma e uma refeição era empurrada no recinto. FINALMENTE!
Ricardo locomoveu-se com toda a velocidade que seu corpo esquálido e desnutrido lhe permitia, chafurdando naquela nojeira toda rumo ao seu pedacinho do Éden. Podia sentir o aroma delicioso se distinguindo do onipresente fedor nauseante. Era seu prato favorito, guisado com legumes! Só podia ser um sonho!
Chorando e agradecendo a Deus regiamente, Ricardo enfiou a cara na tigela de plástico que mais parecia um penico de quinta e foi engolindo aquela maravilhosa, aquecida, essencial e perfeita mistura de pedaços de carne com molho e vegetais. Mordia e engolia como um cão leproso, sua ânsia por se alimentar suprimindo qualquer senso de dignidade ou controle a cada nova e bem-vinda porção que enchia sua boca e escorria gostosamente rumo ao seu estômago. Deus, como era bom estar comendo! Que delícia de carne, tão suculenta e macia! E aquele molho então?! Deveria ter sido feito por um anjo!
Ricardo então escutou algo mais ser deslizado para o interior do maldito recinto e a abertura retangular na entrada ser fechada. Ignorou, pois ainda tinha que terminar sua refeição. Quando o fez, ainda levou um tempo para encontrar o objeto no escuro. Era um pacote semelhante aos que os Correios utilizam para embalar encomendas. Com o cenho franzido e respiração ofegante, Ricardo abriu o embrulho e se deparou com uma pequena lanterna. Rapidamente ele a apanhou e acendeu, assustando-se grandemente com a claridade e sentindo os olhos doerem um bocado.
Após um período de adaptação física e psicológica, o miserável foi vasculhando o local com o facho de luz, um tanto trêmulo ao notar o quão magérrimo e imundo se encontrava.Todavia, isso logo foi esquecido quando o cativo iluminou a parede ao seu lado esquerdo. Havia... Havia algo dependurado ali, bem na quina. Era uma cabeça. Uma porra de uma cabeça humana brutalmente disforme e em decomposição, seus longos cabelos pretos e lisos amarrados em duas tranças laterais pendendo em vias de cair junto com a pele e a carne. Coroando a loucura, abaixo e bem mais para o lado daquela estarrecedora decoração, para seu máximo choque e horror, havia uma mensagem escrita em letras escarlates e garrafais: "VOCÊ NÃO ACHAVA A CRISTINA GOSTOSA? NÃO ADORAVA COMER MINHA MULHER? DESTA VEZ, TOMARA QUE TENHA CURTIDO CADA PEDAÇO. EU ADOREI!"
O estômago de Ricardo parecia estar revirando com a ajuda da mão do próprio Diabo enquanto seu grito de negação fora rapidamente substituído por um jato de vômito. Quase que ao mesmo tempo, um novo filete era derramado pelo buraco no teto. Contudo, aquele não era inodoro como a àgua que garantiu a subsistência do pobre homem vezes sem conta. Era uma torrente da famigerada gasolina despencando irrestrita cômodo abaixo, encharcando tudo o que nele havia.
Ricardo urrava feito um animal ensandecido, arrastando-se na direção da abertura na porta, sem conseguir respirar direito por conta do combustível que se propagava no local. Podia jurar que ouviu uma voz masculina dizendo "te vejo no Inferno, seu filho da puta do caralho" quando o líquido mortal cessou de cair e, pouco depois, descendia um palito de fósforos aceso.
E então toda a escuridão deu lugar à luz e foi a vez de Ricardo ser consumido aos gritos e até os ossos... Tal qual ele e o seu assassino fizeram com Cristina.