Cada poça dessa rua...
Sorelly
Tipo: Conto ou Crônica
Postado: 13/02/18 21:35
Gênero(s): Drama Romântico
Avaliação: Não avaliado
Tempo de Leitura: 14min a 19min
Apreciadores: 2
Comentários: 2
Total de Visualizações: 679
Usuários que Visualizaram: 6
Palavras: 2319
Livre para todos os públicos
Notas de Cabeçalho

Começa a chover

E a lágrima vai se misturar

Com a água que cai do céu

E ao anoitecer

Em vão eu tento encontrar

O que de mim você levou

Pra sempre, pra sempre

( Fresno - Cada Poça Dessa Rua Tem Um Pouco De Minhas Lágrimas )

Capítulo Único Cada poça dessa rua...

Não há necessidade de reclamar da minha vida, ela é, digamos, perfeita. Tenho um marido atencioso, ótimo pai, carinhoso e acima de tudo que me ama. Foi ele que deu-me o melhor presente que podia receber: minha linda filha de três anos, Rebeca. Ela herdou de mim tudo o que eu desejava: a inteligência – que já demonstrara mesmo possuindo pouca idade –, os cabelos encaracolados nas pontas da cor do mel e a aptidão de manusear corretamente um pincél, rabiscando corretamente alguns traços. Porém, ela também herdou dele a aracnofobia e o jeitinho atrapalhado que apenas os dois possuem – e o que me encanta.

Hoje eu penso como seria minha vida se eu tomasse a decisão contrária do que ocorreu. Não, eu não posso pensar nisso! Não posso trazer novamente o fantasma do passado.

Saí do quarto e fui à sala com a intenção de tomar um pouco de ar. Deparei-me com uma cena maravilhosa: Henrique sentado no chão com nossa filha em seu colo, brincando felizes. De longe ouvia-se suas risadas, que ao som de meu ouvido, parecia o tilintar de sinos.

Adentrei na sala e fui recebida com um enorme e jovial sorriso de ambos.

– Mamãe! – gritou Rebeca, saindo do colo de Henrique e correndo em minha direção, para em seguida pular em meu colo.

– Oi, meu anjo! – disse, beijando sua testa em seguida.

– Olá, meu amor. – falou Rick, juntando-se a nós e dando-me um beijo.

– Oi querido!

– Mamãe, tá tudo bem? – interpelou Rebeca, preocupada.

– Você está pálida! – completou Rick, sério.

– Está tudo bem, eu... Eu só preciso tomar um pouco de ar lá fora, está bem? – falei, entregando Rebeca.

– Tome cuidado, querida, a previsão para hoje é de chuva.

– Não precisa se preocupar, Rick. Além disso, eu já irei voltar.

Falei indo na direção da porta e saindo de casa.

Mesmo com as densas nuvens, ainda dava-se para ver oculto no céu as estrelas e a lua, ambas nítidas e luzentes. Senti sobre minha pele os primeiros pingos de chuva a serem derramadas. Olhei para o céu, as nuvens já cobriram toda aquela imensidão obscura, inclusive a lua, minha companheira de tantas noites de insônia, que novamente me abandonou... Como naquela noite, há oito anos.

Eu continuava vagando sem rumo, presa em meus devaneios. A escuridão tomara conta da rua devido a chuva que ganhara intensidade. Resolvi sentar no banco existente na praça. Estava tudo muito calmo, o único movimento que dava vida à esse bairro era as pessoas correndo para suas casas.

– Pensei que nunca mais a veria, Camila!

Meu corpo todo ficou petrificado em questão de segundos. Não, não podia ser aquela voz, aquele perfume, aquela pessoa que eu almejo esquecer e que toda noite consegue me causar insônia. Meus olhos encontraram os deles durante um longo segundo, antes de respondê-lo.

– Fernando!

– Fico feliz que o tempo não a fizera me esquecer.

– Quem me dera ser lisonjeada com a sorte de esquecê-lo! – respondi-o friamente.

– Bem, posso me sentar?

– Fazer o que, o banco é público, ainda não existe uma lei que proíba alguém indesejado de sentar ao meu lado.

– Desde quando tornara-se tão fria? – interpelou, sentando-se ao meu lado.

– Desde quando se importa? Ou melhor, quando foi que seu pai deixou você falar com indignos?

– Desde que completei dezoito anos! Olha Camila, eu não queria ter falado todos aqueles impropérios. E-eu fui obrigado a falar e fazer tudo aquilo!

– Para de mentir, Fernando! – gritei, levantando-me e o encarando – Se realmente for homem, fale a verdade pelo menos uma vez na vida.

– Eu estou falando a verdade! Por que é tão difícil você acreditar em mim?!

– Como você quer que eu acredite? – minhas lágrimas já não hesitavam em cair e agora misturavam-se com as gotas de chuvas. – Eu te entreguei todo o meu amor, e o que ganhei? Só mágoas e mais mágoas! Mas isso não é nada comparado com a humilhação que você fez eu sofrer por sua causa, afirmando para todos que só estava comigo por pena, já que afinal, você é da alta classe, uma pobretona como eu iria só trazer má reputação para sua família e...

– Para, Camila! – berrou Fernando, pegando em seguida meus ombros. – Será que você não percebe?! Qu...

– Perceber o que Fernando? Que eu fui apenas um fantoche em suas mãos?! – tentei me soltar das mãos dele, mas ele me apertou mais forte, evitando que eu fugisse.

– Me deixa terminar de falar! – seu timbre havia mudado, a entonação havia ficado mais séria, o que me fez estremecer. – Será que você não consegue entender que eu sempre a amei?! Todo esse tempo que passei longe parecia que alguma coisa dentro de mim ficara vazia. Só hoje, ou melhor, só agora que te encontrei percebi que o meu coração havia ficado com você, assim como o meu propósito de vida. Por favor, perdoe-me por tudo que eu causei a você, eu... Eu não consigo mais viver sem você!

– Perdoar-te? – comecei a rir seco. – Não Fernando, não vou mais ser magoada por você. Eu já te esqueci há muito tempo – menti – tanto que hoje eu sou casada e mãe de uma linda menina de três anos! Você me magoou muito no passado, não posso perdoá-lo por isso, seria a mesma coisa de aceitar todos os seus atos e ter ilusão novamente sobre mim.

Após dizer isso, senti suas mãos afrouxando-se em meus braços.

– Então, você realmente me esqueceu, não é?! – suspirou. – Mas eu nunca acreditei plenamente nas palavras, apenas acredito nos gestos que são mais verdadeiros. Você poderia estar mentindo para mim agora.

– O que quer dizer com isso?

– Quero dizer que, por mais que eu queira, não consigo viver sem você! – ele me fitou intensamente, e nos seus olhos pude ver todo o amor que ele ainda guardava por mim. Por que aquilo mexeu comigo?

– E como viveu esses anos todos? – alterei-me. – Tenha consciência de uma coisa Fernando, eu NÃO TE AMO MAIS!!

– Eu já disse que não acredito em suas palavras! – falou frio. E logo eu pude sentir sua mão em minha nuca e seus lábios pressionando os meus. Coloquei minhas duas mãos em seu peito com a tentativa de afastá-lo, mas isso foi em vão; ele era muito mais forte.

O beijo transpareceu uma explosão de sentimentos. Havia raiva, nostalgia, amor, fúria e... Medo?

– Você não tem ideia do quanto foi insuportável viver sem você! – afirmou Fernando.

Algo nele havia mudado. Sua voz estava mais cálido, seu olhar mais apaixonado e intenso. E algo em mim também mudou, eu só não sabia o que era. Tive a sensação de que a resposta era óbvia, tão óbvia que eu não conseguia enxergar.

– Não vai falar nada, Camila?

Sua voz me trouxe para a realidade. Não por ela ter saído aplausível, mas por me fazer entender o que estava acontecendo dentro de mim. Sorri com esse pensamento.

– Foi muito bom te encontrar novamente, Fernando!

– Nada é por acaso, meu amor. Se o destino nos juntou novamente é porque ela quer dizer alguma coisa a nós. E talvez...

– Eu concordo, o destino quer me dizer algo – interrompi-o, fazendo ele olhar para mim, curioso – Esse tempo todo que estive vivendo depois de ser magoada não teve um momento que não pensasse em você. – vi ele sorrir – Mas sabe, depois de hoje uma resposta que eu tanto procurava acabei encontrando.

– Que você me ama? – sua resposta saiu mais como uma afirmação do que uma pergunta.

Sorri para ele, tirando seus braços que estavam em volta de minha cintura e,ainda fitando-o nos olhos, respondi com toda certeza do mundo.

– Ao contrário Fernando, eu deixei de amá-lo há muito tempo.

Ao dizer isso, senti nitidamente como se estivesse sendo observada. Afastei para longe esse pensamento.

– Você não pode estar falando sério, Camila. Não pode!

– Mas estou!

Fernando tentou me beijar, mas eu me afastei, olhando para o lado.

Não sei dizer exatamente há quanto tempo ele estava lá, parado, com o guarda-chuva sob a cabeça. A julgar pela sua expressão fria e vazia, tempo suficiente para chegar à conclusão errada.

– Espere, Henrique! – gritei, mas já era tarde demais, ele estava indo embora.

– Deixe-o ir. – ouvi Fernando me dizer.

– Me deixa em paz, Fernando! – falei, soltando-me de seus braços e o afastando – Faça um favor a nós dois, esqueça-me! Eu não o amo mais. Eu amo o Rick!

Minha voz saiu mais fria do que pensei. Mas nada disso importava. Corri o mais depressa que minhas pernas aguentavam. Eu não podia perdê-lo! Não agora.

A chuva perdera sua intensidade. O único som que dava vida àquele lugar era de meus passos sobre as poças d’água.

– Espera, Rick. – peguei seu braço, fazendo-o parar assim que eu o alcancei – Não é nada disso que você está pensando, eu...

Fui interrompida pelo seu riso seco.

– Imagina, eu não a vi aos beijos com o Fernando, vocês só estavam conversando! – retrucou em um tom sarcástico.

– Deixe-me explicar...

– Explicar o quê? – falou alterado. – Que você ainda o ama? Se for isso, não precisa perder seu tempo, eu já sei! Você nunca conseguiu esquecê-lo definitivamente, não é? – suspirou. – Olha, eu deixei Rebeca dormindo, se ela acordar e não me ver você já sabe o que vai acontecer.

– Rick...

– Não precisa se preocupar, Camila. Desde o momento em que casei contigo soube que seu coração nunca seria meu, ele sempre vai permanecer ligado ao Fernando. E eu também sempre soube que este dia chegaria, não há como separar duas pessoas que se amam.

– Não é nada disso... – tentei explicar, mas novamente fui interrompida.

– Camila, eu já aceitei o fato de você amar outra pessoa. Não se sinta presa a mim por estarmos casados. Está na hora de eu parar de insistir. Vá atrás do Fernando e seja feliz de verdade, meu amor.

Fiquei paralisada com a frieza e o vazio de seus olhos, tanto que eu o vi partir sem ao menos tentar impedi-lo. Ele não parecia o Henrique que conheço... O meu Rick. Aqueles olhares cálidos de antigamente parece que nunca existiram. Era como se um vazio distendesse dentro dele e transparecesse pelos seus olhos.

Mas o que eu esperava? Que ele fingisse não ter visto nada e continuar fazendo de conta que nada aconteceu? Não, o Rick nunca faria isso, não o que conheço. Ele sempre quis fazer as pessoas que ama feliz, mesmo que para isto tenha de renunciar a própria felicidade. Foi isso que mais me cativou nele.

Amá-lo me ensinou a ver o quão belo pode-se ser a vida. E que a felicidade, ao contrário do que muitos pensam, é um sentimento simples, mas por ser simples, diversas vezes a encontramos e a perdemos por não perceber sua simplicidade. E agora eu acabei de perder a minha chance de ser verdadeiramente feliz.

Do que eu estou falando? Não posso deixá-lo ir embora de minha vida sem ao menos fazer algo a respeito! Desprendi-me dos meus devaneios e corri para casa. Não importa o que acontecesse, não o deixarei partir.

Adentrei em casa, resfolegando. Estava tudo enegrecido, a única luminosidade existente era da lâmpada que ficava toda noite acessa no corredor. Abri a porta do quarto da minha filha, o abajur estava ligado e, apesar da luz ser demasiada fraca, ainda dava-se para ver o rostinho angelical e sereno de Rebeca. Ótimo, ela estava dormindo. Fechei a porta delicadamente para não acordá-la e me dirigi para o quarto ao lado. Meu quarto!

Ao entrar, pude ver nitidamente uma silhueta sentada na ponta da cama, com os braços sobre as pernas e as mãos sob a face, sendo iluminado pela fraca luz do abajur. Respirei fundo, tomando coragem para, enfim, acender a luz, iluminando todo o quarto e fazendo com que ele olhasse para mim. Seus olhos estavam avermelhados e levemente inchados, denunciando que havia chorado.

– Conversaram rápido. – falou frio.

Fechei a porta atrás de mim, antes de encará-lo e respondê-lo.

– A gente precisa conversar.

– Acho que não temos mais nada a falar um para o outro. – disse, se levantando.

– Espera! – falei segurando seu braço, impedindo-o de abrir a porta e sair.

Ele virou, parando de frente a mim, encarando-me.

– Por que não diz de uma vez que você o ama? Por que não diz logo que nunca me amou? Por quê...

– Porque eu te amo! – interrompi-o, segurando seu rosto entre minhas mãos.

– Cami...

– Eu sempre te amei. Desde o momento em que casamos, eu já era apaixonada por você. Mas... eu fiquei tão apegada ao passado que não consegui viver e muito menos sentir os momentos do presente. E só agora que revivi o passado pude perceber que há muito tempo deixei de amar o Fernando e comecei a amá-lo! – minhas lágrimas já não hesitavam em cair, agora elas rolavam soltas pela minha face – Todavia, só agora eu posso perceber isso... eu... eu não quero te perder! – declarei.

Retirei minhas mãos de seu rosto e fitei o chão. Tive medo de encará-lo e ver refletido em seus olhos apenas ódio. Tamanha foi à surpresa de senti-lo levantar minha a cabeça fazendo olhar em seus olhos e verao invés de ódio como pensei, o mesmo olhar cálido e carinhoso de antigamente.

– Eu te amo, Camila! – ouvi-o falar com a voz sobrecarregada de emoção. Um segundo depois pude sentir seus lábios pressionando os meus. Correspondi com a mesma intensidade.

Fechei os olhos lentamente. Nada mais importava. Eu só queria curtir esse momento ao máximo, o nosso momento, o recomeçar de nossas vidas, agora juntos. Finalmente pude ver o meu passado desaparecer, fazendo todos os sentimentos e ressentimentos que me mantinha ligada ao Fernando desaparecer junto.

Quando você se apega demais ao passado você vira prisioneira dele, impedindo de vivenciar o presente e de ser feliz. Por causa disso eu quase perdi a pessoa que amo e, que mesmo não tendo notado antes, é a única que consegue me fazer verdadeiramente feliz.

Nada é pra sempre. Mas farei até o impossível para que esse amor se mantenha vivo e forte durante muitos anos.

❖❖❖
Notas de Rodapé

Aquele texto antigo que a gente revisa mas sabe que ainda tem algum errinho.

Amem o próximo, não se apeguem ao passado e notem os pormenores da vida. Até a próxima!

Apreciadores (2)
Comentários (2)
Postado 21/02/18 01:36

A mensagem passada neste texto é linda e com certeza guardarei em meu coração.

Como sempre, tu consegue cativar o leitor do início ao fim, tocando a alma com uma incrível sensibilidade. Meus parabéns ❤

Postado 03/03/18 20:51

Obrigada, Brina ♡

Postado 25/05/18 20:33

Ela não pode simplesmente lacrar, ela tem que lacrar e ainda usar uma música do Fresno... UMA DAS MÚSICAS QUE EU MAIS AMO DA VIDA!!

Assim eu não sobrevivo!

Parabéns!

Postado 26/05/18 23:08

Thanks ♡