Um pé na bunda ensina mais do que toda filosofia de Aristóteles. Cometer um grave erro, um deslize ético, e reconhecer isso, a odiosidade dos impulsos cegos e da irreflexão, a mesquinharia bolorenta do egoísmo, do umbigocentrismo, da estupidez que é o-não-colocar-freios-na-língua... — isso, meu amigo, para o mal ou para o bem, muda a vida dum sujeito.
Cioran escreve que "no auge da Passividade, pensa-se em uma boa crise de epilepsia como em uma terra prometida." Por muito tempo passei os dias de boca aberta, imerso numa ociosidade nula, num tédio que se retroalimentava entre quatro paredes brancas e a monotonia de um dia pleno de covardia e inatividade...
Quando considerei seriamente o suicídio, foi quando a insônia tomou conta de mim, e tive pesadelos em que eu verdadeiramente enlouquecia, a língua enrolada, falando, incompreensivelmente, em acessos oníricos de demência. Noutro pesadelo, uma bala perdida atravessou meu pescoço, e eu despertei com calafrios mórbidos, numa madrugada de trevas em que não mais consegui me eximir de viver. Considerei aquele momento como o badalo dos sinos, o badalo de todos os sinos, um apelo definitivo, que assinalou para mim a urgência de Ser.
Só o desespero nos liberta de nosso sono existencial. O doente possui o dom do desprezo: abraça apenas o essencial, cospe em tudo aquilo que é vão.
Não tenho mais tempo para lenga-lengas, ou ninharias, ou preconceitos. A palavra de ordem é versatilidade. É preciso dar piruetas, plantar bananeiras, fazer qualquer coisa. Quando há um excedente de energia vital em nós, a alma jorra pelos olhos, narinas e ouvidos. O corpo vibra, quer correr pelo mundo, junto com o pensamento, numa roda frenética de compreensão e conhecimento.
Nas ruas, aprendi a virtude do mendigo. Sentar-se na sujidade do chão e observar os passantes. Boiar em meio a correnteza de delírios. Para onde vão todas essas pessoas? Que diabos significa isso tudo, esse movimento?
Sou pessimista, e otimista; iludido, e sagaz; sábio, e ignorante; tudo, e nada; é isso o que sou: um antro de paradoxos. Ao diabo com as definições! — Meu nome não me contém. Que é que nos explica? Animal político, brasileiro de etnia tal, de classe tal, de profissão tal, etc. etc. Classificações, classificações... Dispidos de todos os rótulos, que é que resta? Infinitos...
Quando se tem algo a dizer, nada pode nos impedir. A frescura dos escritores é crer que é preciso fazer todo um ritual para escrever, com café quentinho, espaço fresquinho, tudo "organizadinho"... Isso é válido, se possível. Mas se temos realmente algo a dizer, escreveremos, na falta de outra coisa, nas paredes, na palma da mão, no verso de um panfleto duma pizzaria, de qualquer modo, e isso será o suficiente. Tales de Mileto cravava em pedra a sua filosofia. Seu pensamento é um jorro de sabedoria no seio da Grécia antiga. Tenho um colega poeta que escreve muito bem nobres e acuradas reflexões sobre a vida e a morte enquanto seus vizinhos brigam e gritam e ouvem funk no volume máximo. Bukowski escreveu: "não, jovem, se você vai criar/fará isso mesmo que trabalhe/16 horas por dia numa mina de carvão/ou/criará num cubículo com 3 crianças/enquanto vive/da previdência social,/criará com parte de sua mente e de seu/corpo/estourados,/criará cego/aleijado,/demente,/criará com um gato escalando suas/costas enquanto/a cidade inteira treme em terremotos, bombardeios,/alagamentos e fogo./jovem, ar e luz e tempo e espaço/não têm nada a ver com isso/e não criam nada/exceto talvez uma vida mais longa para encontrar/novas desculpas."
Distribuí nas ruas alguns poemas meus e uma velhinha — de aparentemente oitenta anos, trêmula e taciturna — levou dois exemplares onde eu digo que estamos todos em queda livre num grande abismo. Não sei o que diabos ela pensou, ou se leu, mas sei que o meu trabalho é expressar o que sinto, seja luz ou trevas, de natureza sagrada ou profana. Levo versos sobre a morte para pessoas à beira da morte, e não sou de modo algum um salvador ou destruidor, não estou a serviço de nenhuma causa; sou um mero fotógrafo.
Emerson, brilhante espírito, homem de raro gênio e grandeza, ensaísta e filósofo americano, dizia:
"A sabedoria, na vida,é concentrar-se; o mal, é a dissipação: e sejam os nossos divertimentos grosseiros ou requintados, haja a propriedade e suas preocupações, os amigos, os hábitos sociais ou a política, a música ou os festins, isso não faz diferença alguma. Tudo o que nos arrebata, um brinquedo e uma ilusão mais, e nos reconduz a nós mesmos para fornecer novo esforço de trabalho honesto, é coisa boa. Amigos, livros, pinturas, deveres inferiores, talentos, lisonjas, esperanças — tudo isso são distrações, que fazem oscilar nosso leve balão, e tornam impossíveis o equilíbrio e a marcha reta. Deveis escolher vossa obra; deveis pegar o que vosso cérebro pode suportar, e abandonar o resto. Só assim se acumulará aquela soma de força vital que permite transpor a distância do saber ao Poder."
O Poder — o Poder de traduzir em sentenças diamantinas precisamente aquilo que de mais sublime ou profundo saltita em nosso espírito.
A preguiça nos compele a sentar com nossas nádegas caducas e vagar pelo feed de notícias do Facebook, constatando a confusão da nação, ou a aparente felicidade alheia, enquanto meme após meme rimos, impotentes, de toda essa tragicomédia que é o século XXI, século de grandes avanços, e barbáries; século em que o homem se vê desconstruído, e em reconstrução contínua; flutuando no rol das infinitas possibilidades...
Lá fora, o trabalhador, seja ele pintor, jardineiro, pedreiro, comerciante ou policial, movimenta as engrenagens da sociedade, o dinheiro, as ações, os acontecimentos; tudo se engloba, e se manifesta coletivamente: grandes fenômenos que os "pensadores" tentam apreender trancados em suas torres de marfim, em casa, comendo cheetos e se masturbando.
Saí da mais sombria e soturna solidão e me lancei de cabeça no seio do povo.
Em dois dias, aprende-se mais do que em trezentos dias de covardia e preguiça.