A Memória Falhou
Giu Yukari Murakami
Tipo: Conto ou Crônica
Postado: 06/12/17 23:46
Editado: 17/12/17 13:25
Avaliação: 10
Tempo de Leitura: 12min a 16min
Apreciadores: 6
Comentários: 5
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Palavras: 1989
Não recomendado para menores de doze anos
Notas de Cabeçalho

O conto está presente na antologia de contos "Perdão! Contos Familiares" da Editora Illuminare.

Capítulo Único A Memória Falhou

Costumávamos brincar de memória em dias de chuva quando éramos crianças. Ele sentava-se ao meu lado no jardim que separava minha casa da dele, embaralhava as peças de cabeça para baixo e me pedia para começar. Em algumas ocasiões notei que ele simplesmente me deixava ganhar. Quando percebi isso, o jogo deixou de ser engraçado.

Porém, depois de alguns anos, continuamos a brincar de memória de outras maneiras. “Brincar” talvez não fosse o melhor termo.

-Onde eu deixei minhas chaves? – ele perguntava esbaforido, atrasado para o trabalho.

-Pelo amor de Deus! – apontei para a gaveta direita da estante onde eu sempre deixava nosso molho de chaves que abria tanto a casa onde morávamos quanto a loja que construímos cinco anos depois do nosso casamento.

-Só estava te testando! – ele dizia com um sorriso maroto e beijava-me os lábios num estalo.

Provavelmente por termos uma afeição grande por jogos de memorização tudo em nossa vida girasse em torno disso. Ele começava o dia com uma pergunta:

-O que você fez ontem?

E eu lhe narrava todos os meus feitos, que não eram tão variáveis quanto os dele. Emílio Franco gostava de aproveitar bem seus dias, de uma forma que o que fazia tinha que ser diferente do que já tinha feito. Ele não suportava que eu repetisse o prato de comida por exemplo.

-Não! – exclamou ao vislumbrar um pedaço de frango na chapa com brócolis, exatamente como eu havia feito um dia antes.

-Mas sobrou muito de ontem! – tentei conter seu desânimo.

-Culpa sua, não? Fez muita comida.

-Não sei se você se lembra, mas seus pais disseram que viriam para cá ontem. Lógico que fiz mais comida que o normal!

-É claro que me lembro – ele falou indignado, como se a simples dúvida de que ele se esqueceu de algo o fizesse estúpido.

À noite, ele narrava contos de fábulas dos Irmãos Grimm. Quando terminou as historinhas resolveu inovar: comprou a coleção original desses autores e passou a ler em inglês ao pequenino.

-Emílio! – adverti – Ele não compreende.

-Não se engane... – respondeu enquanto o filho dormia – O cérebro dele está captando todas essas palavras. Daqui a alguns anos, ele terá facilidade para aprender outras línguas. Estou fazendo meu papel de pai!

Nunca ouvimos as mesmas músicas no carro. Emílio mudava toda a playlist do dia anterior com repulsa.

-Daqui a pouco não existirão canções suficientes para suportar sua mania – dizia com revolta.

-Existem tantas no mundo que seria uma gafe minha repetir uma em detrimento de outra que eu jamais ouvi na vida – ele viu minha expressão fechada e sorriu-me – Mas, claro, prometo que quando terminarmos de ouvir todas as músicas do mundo eu irei retornar para a primeira que escutamos.

Sua mania não era tão radical quanto deves estar pensando. Ele apenas não gostava de fazer coisas iguais em espaços de tempos curtos. Sabendo disso, em uma noite de verão, um amigo de infância que morou na nossa rua anos antes resolveu nos visitar.

-Grande Renato! Um prazer te ver de novo... Entre, entre. Precisamos colocar nossos assuntos em dia. Aliás, é a primeira vez que vens aqui não?

Eu e Renato rimos. Sabíamos que Emílio não poderia deixar escapar algo novo. Em consequência, passaram dez minutos caminhando pela casa enquanto eu terminava de preparar a lasanha de bacalhau com molho branco sem cebola... Porque no dia anterior havia feito com cebola.

Estávamos jantando somente nós três quando Renato limpou os lábios com o lenço e comentou casualmente:

-Meu amigo, sempre refleti sobre algo.

-O que, meu caro?

-Você jamais gostou de mesmices não é?

-Insuportáveis! – riu.

-Então, por que casou com essa belíssima e dedicada mulher?

-Ora, já respondeu a sua própria pergunta.

Corei com o elogio implícito de Emílio. Ele não costumava ser um homem romântico.

-Mas, veja bem... – Renato riu tomando um gole longo de cerveja – Independente se a Mari for ou não a mulher perfeita, você se prendeu em uma rotina. Todos os dias é a mesma coisa: acorda, toma banho, vai trabalhar, depois volta para casa...

Gargalhamos juntos com aquela conclusão óbvia. Meu marido olhou-me com sorriso maroto, uma das poucas coisas que nunca mudavam nele e deu-me um selinho, finalizando a conversa.

Alguns dias depois daquela visita, decidimos fazer uma reforma na nossa loja.

-Irei verificar como as coisas estão indo! – ele anunciou já pegando as chaves na gaveta direita da estante.

-Mas não íamos visitar seus pais?

-Fizemos isso há uma semana.

-Seu pai está muito doente.

-Sim, eu sei disso – ele plantou um beijo em minha testa – Uma pena não é?

E saiu vestindo casaco de maneira desleixada. Suspirando, ignorei seu comportamento. Outra característica que eu não costumava gostar nele eram suas rápidas mudanças de humor. Eu sempre tinha que me adaptar a ele.

Visitei meus sogros com meu filho, que de certa forma os animou com as histórias cômicas que o pequeno tinha a contar sobre sua rotina de aulas.

-Mas o Neto está cada vez mais lindo – exclamou minha sogra com um ar angelical – Esse pequeno grande Antônio. Meu garotinho lindo de vó!

Voltamos para casa com mimos para todos os lados, inclusive um grande pedaço de bolo que Emílio comeu naquela noite vorazmente.

-Você está bem? – ele ignorou minha pergunta. Pigarreei para, finalmente, ver seus olhos fitarem-me.

-O que foi? – perguntou com a boca cheia, arrancando gargalhadas de Antônio. Não resisti àquele momento e me entreguei ao riso.

Na madrugada, despertei para ir ao banheiro e tomei um susto ao perceber que Emílio não estava deitado ao meu lado. Fui até a sala sorrateiramente e vi meu marido estirado no sofá, roncando.

Ele parecia tão exausto que preferi esperar para indagá-lo sobre quando amanhecesse. Porém, ao fim, ele limitou-se a responder:

-Não gosto mais daquele colchão. Minha coluna anda doendo muito.

-Mas o sofá só piora as coisas.

-Óbvio que não. Aquele colchão está velho – retorquiu aborrecido.

-Ótimo, então vamos comprar um novo!

Procuramos pelo bendito colchão. Experimentamos inúmeros, mas Emílio negava-se a escolher qualquer um.

Ele continuou dormindo no sofá durante toda a semana. De manhã, saía para analisar a reforma na nossa loja e à tarde jogava vídeo game com Antônio.

-Pai, não é justo!

-O que? – Emílio ria.

-O senhor já decorou todos os golpes.

-Isso se chama memória perfeita, meu garotinho – ele embaraçou os cabelos do menino que fez um bico – Vou te ensinar a gravar esses golpes. Nada melhor que a prática para exercitar a mente!

Por mais que eu gostasse de vê-los jogar, o afastamento de Emílio me incomodava. Ele estava sempre a arranjar um pretexto para não ficar a sós comigo. Sua presença era simbólica.

Semanas se passaram naquela estranha convivência. Pouco conversávamos e não nos tocávamos. Quando íamos à missa, eu e Antônio, Emílio sempre dava um jeito de não nos acompanhar. Dizia que estava com alguma enfermidade. Porém, quando eu sugeria ficar para cuidar dele, ele se esquivava como um pássaro e dizia que meu comprometimento com o Senhor era mais importante.

Certa noite, sem suportar a ausência dele, saí do meu quarto e joguei-me no tapete de frente para o sofá. O barulho do baque despertou Emílio que me fitou surpreso, mas indagador.

-Estou cansada de dormir sozinha – confessei – Sabe que tenho pesadelos!

Era uma desculpa infantil, mas através dela consegui um vislumbre fantasmagórico do sorriso maroto que eu tanto amava. Ele deitou-se ao meu lado e abraçou-me como há tempos não fazia.

-Tens algo a me contar? – perguntei com o coração a mil enquanto sentia a respiração quente dele em meu pescoço. Demorou tanto a responder que eu imaginava que já estivesse dormindo.

-Não – sussurrou – Só estou cansado!

Eu sabia que ele estava mentindo. Todavia, uma parte de mim queria acreditar nele porque era difícil demais aceitar que havíamos perdido nossa cumplicidade.

Chegamos ao mês de dezembro. Eu estava quase a enlouquecer com tantas tarefas para fazer e Emílio parecia não estar nenhum pouco interessado em dividir comigo as frustrações financeiras da nossa casa.

-Mãe, quer ajuda? – perguntou Antônio. Tentei conter minha expressão fechada e dei meu melhor sorriso para meu filho, cuja inocência obscurecia seu olhar para o mundo. Quisera eu ainda possuir esse véu extraordinário.

-Não, meu amor. Vá brincar no seu quarto vá. Tenho que arrumar nossa sala!

Sozinha, passei toda a véspera de Natal deslocando móveis, espanando, varrendo, passando pano e secando. Temerosa com o horário, lembrei-me que faltava comprar alguns presentes para os convidados e corri para pegar meu celular e ligar para o meu marido.

Celular desligado por mais de uma hora. Não aguentei! Aquilo estava tornando-se insuportável para mim. Chamei minha vizinha, na qual depositava a confiança de deixar meu filho sob seus cuidados em momentos inevitáveis, e pedi para que observasse meu pequenino por alguns minutos.

Então, peguei as chaves da loja e caminhei até ela, cuja localização era de apenas um quarteirão do nosso lar.

A chuva torrencial não me impediu de continuar minha trajetória. Ao contrário, reforcei meus passos executando uma pequena corrida até chegar à entrada da loja de souvenires. Ofegante, sequer notei que as luzes estavam desligadas quando abri a porta.

-Emílio! – chamei ligando o interruptor.

Estanquei com a cena. Meu marido estava por cima de Ivete Oliva, nossa funcionária da loja, as calças abaixadas até os calcanhares, enquanto parecia afundar-se nela em um desespero jamais visto por mim. As saias azuis da moça estavam levantadas e os botões da camisa social parcialmente abertos. Tive um vislumbre de seus gemidos de prazer antes que seus olhos aterrorizadas fitassem a minha figura patética.

-Mari! – exclamou aquele homem enquanto tentava inutilmente subir as calças.

Ele olhou desesperado para Ivete, cuja expressão de choque a tornava uma estátua erótica humana, pálida como mármore, e tão vil quanto.

-Por favor – ele disse. Somente percebi que eu estava afastando-me quando sua voz soou distante.

No meio da rua, Emílio correu até mim, clamando por minha atenção. Eu só conseguia sentir as últimas gotas de chuva pingando em meu rosto misturando-se com o salgado sabor de minhas lágrimas.

Alcançou-me e abraçou-me. Sussurrou palavras incompreensíveis. Balbuciou desculpas incoerentes. Choramingou pedidos de perdão.

-Emílio... – pedi e ele se afastou. Seus olhos estavam vermelhos e creio eu que os meus também.

-Mari, me perdoe – ele pediu – Eu te amo!

Olhei-o desgostosa e neguei com a cabeça, mordendo meu lábio.

-Você se diz o grande memorizador, mas esqueceu que assumiu um compromisso conjugal comigo – falei em um tom de voz contido – Esqueceu de tudo o que vivemos! Fala tanto em preservar o que vive na memória e esqueceu que tinha uma família te esperando em casa.

Minhas palavras o feriram profundamente. Não era essa minha intenção. Eu apenas queria mostrar a Emílio o quanto não demos certo dentro de suas incertezas geradas por um hábito vicioso que ele possuía.

Nosso casamento acabou ali, no meio da rua, às vésperas do Natal, sob a chuva.

Tempos depois, soube por um amigo comum nosso – não o Renato, que julgo eu ter sido o estopim de toda aquela desordem – que Emílio estava “muito bem, obrigado!”, levando a vida boêmia com as novas parceiras de cama que arranjava em suas aventuras noturnas. Pouco entrava em contato comigo e só ligava para saber do filho, que sentia sobremaneira a ausência do pai nas tardes de domingo quando costumavam jogar vídeo games.

-Ao menos isso... – eu dizia para mim mesma quando via Antônio mais risonho depois de conversar com o pai por telefone.

Vivia meus dias como se fantasmas rodeassem minha mente. Ele quem me acostumou tanto a memorizar cada detalhe, a aproveitar cada momento, estava com certeza desfrutando de sua insana vida de mudanças. Quanto a mim, restava sofrer a dor de não poder esquecer as boas lembranças que criamos juntos. Mas havia esperança de que um dia eu pudesse seguir sem olhar para trás. Afinal, se a memória dele falhou, a minha poderia um dia falhar também! “E que não demorasse para tal”, eu rezava em desespero silencioso.

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Apreciadores (6)
Comentários (5)
Postado 08/12/17 11:18

Esse texto... simplesmente... deixou-me absolutamente sem palavras, simplesmente não esperava tamanho estarrecimento, tamanho abalo que se produziu por toda a extensão de meu corpo. Deus, Deus, Deus! Três vezes Deus! Absurdamente bem escrito, a ideia, e tudo, e tudo... o que me fisgou foi quiçá a absurda — repito: absurda — identificação que senti... com relação à trama! Foi como se... houvessem penetrado em minha alma... Sim, que violência, que penetração e profundidade o arranjo das palavras tuas foi capaz de gerar. Grande escritora!

Postado 08/12/17 13:51

Agradeço pelas gentis palavras, caro V. Fico feliz em despertar esse senitmento de "cartasis" em ti, dessa forma tão aterradora a ponto de você se identificar com a estória. Espero, porém, que não sejas um Emílio na vida real hahaha.

Muito obrigada!

Postado 08/12/17 20:56 Editado 08/12/17 20:59

Concordo plenamente em gênero, número e grau com o senhor V do comentário a cima!

De fato um dos mais bem escritos textos da Academia! E também, e infelizmente, bem próximo de mim... É terrível quando se constata que aquela pessoa que costumava ter as pupilas dilatadas quando te via, passou a ser apenas como um banco macio aonde você costuma repousar a cabeça, mesmo assim, se sentindo sozinha.

É sempre um desespero silencioso, como foi muito bem colocado pela senhorita.

Os amores sempre nos acostumam a imaginar e a memorizar e tudo parece uma linguagem em braile que só os amantes conhecem até que... Acaba se tornando apenas nada...

E como dói... Mas um dia superamos, um dia, ressuscitaremos de todas as mortes românticas.

Que texto magnifíco!

Postado 11/12/17 11:33

Muito obrigada pelas gentis considerações. É realmente uma dor lancinante verificar que todo uma história lindamente construída se desfaz em um dia, em algumas horas ou quiçá segundos.

Não era minha intenção despertar sentimentos tristes em você, mas saiba que todos que passam por isso se fortalecem e seguem suas vidas com confiança em si mesmos, pois sabem que deram de tudo pela pessoa anteriormente amada.

Abraços Literários!!!

Postado 19/12/17 22:34

Posso dizer sem medo de represálias que esta obra é uma das mais excelsas de todo o vasto acervo deste antro desgraçado, tanto pela ideia em si quanto pelo modo que a senhorita a transmitiu: sua narrativa é inibriante, congruente e fluida, tornando a leitura praticamente imersiva em questão de pouquíssimos parágrafos.

Devo também ressaltar que a trama segue com naturalidade e intensidade, graças a qualidade e quantidade de detalhes que, longe de tornar tudo maçante, fazem com que o leitor simplesmente não consiga ou queira parar até que o infeliz final se concretize. Eu, particularmente, gostei bastante das questões acerca do poder do hábito e da importância das lembranças para a manutenção dos relacionamentos e até mesmo do próprio caráter de cada um de nós.

Bom, se eu comentar mais que isso o feedback vai ficar imenso, então só gostaria de regiamente lhe agradecer por compartilhar algo tão excepcional conosco e lhe parabenizar por tamanho talento, criatividade e desenvoltura literária! Hail, Srta Nayara!

Atenciosamente,

Um ser fadado ao esquecimento, Diablair.

Postado 25/12/17 15:43

Que texto incrível... Meus parabéns!

Postado 25/12/17 16:32

Muitíssimo obrigada! :D

Postado 29/12/17 04:32

Eu adorei essa obra. Ela pode ser o reflexo da realidade de muitos por aí. Estou maravilhada.

Parabéns, moça ❤