Em um movimento sem ritmos
e sem razões
veio a serpente soberana,
sapientíssima,
hedionda em seu vermelho enegrecido de sofrer,
de olhos amarelos como a vivência,
de boca salivante
dos remédios que nem sempre se quer provar.
Em um movimento certo
e sem hesitações
veio o anjo da terra,
coberto em lama e sangue,
bebericando das poças que eu mesmo deixei,
silvando pelos caminhos nos quais eu mesmo rastejei,
trançando entre aquilo que rasgava sua superfície,
e me fazia sentir o que não queria,
dava-me aquilo de que precisava.
…
Enrolou-se em minhas pernas,
abraçando-me como as estrelas abraçam sua destruição;
subiu-me ao rosto,
rasgando-me as têmporas como se rasgam todas as lamúrias mais sinceras.
Senti o que era quente e o que era frio,
meu sangue e seu veneno,
minhas lágrimas e suas
lágrimas.
Testemunhei a serpente chorar
enquanto me devorava
amorosamente.
Já não haviam membros ou voltas,
pele ou escamas:
já não havia o que era eu,
não havia o que era ela.
Consumindo naquela que me consumia,
dominando e sendo dominado,
duas almas mais que mortas
fundidas
em menos que uma:
dois corpos corrompidos,
reanimados pela fome de si mesmos
e de sua própria vergonha.