Gabriel se remexia na cama, tomado pela ansiedade e pela curiosidade. Sua mãe lhe deixara bem claro: “vá dormir menino, o papai Noel não gosta de ser incomodado! Terá seu presente pela manhã!” Mas Gabriel já era velho demais, no auge de seus dez anos, para ainda acreditar nessas coisas de criança. Bem sabia ele que era seu pai quem deixava os presentes embaixo da árvore.
Mas tudo bem, ele manteria aquele teatrinho. Porém, sua ansiedade explodia com a possibilidade de ganhar um VR para incrementar o seu Playstation. Mal se aguentava de ansiedade para experimentá-lo.
Escutou passos percorrendo o corredor. Acendeu a tela do seu celular no criado mudo, e teve a confirmação que queria. Meia-noite, a hora em que seu pai colocaria o presente na árvore que adornava a sala. Gabriel esperaria mais uns vinte minutos, e quando tivesse certeza que seus pais estivessem dormindo, escorreria até lá embaixo, e teria seu presente.
Teria uma noite toda para testá-lo e então o devolveria ao lugar, e é claro, fingiria surpresa pela manhã. Um plano genial feito por uma mente genial. Foi contando os segundos até acreditar que seria seguro sair do quarto, e então pôs seu plano em prática.
A casa estava no completo silêncio, entrecortado apenas pelos causais roncos de seu pai. Gabriel avançou a passos leves pelo corredor, depois desceu devagar a escada, tão leve quanto uma pluma.
E lá estava a árvore. As luzes piscavam, projetando sombras por todo o cômodo. Não era uma árvore muito grande, mas tinha uma estrela bem dourada na ponta. Aos pés do enfeite, um grande embrulho, do tamanho que o menino esperava.
Gabriel estava animado demais para reparar que o grande relógio preso a parede estava girando ao contrário. Apanhou seu presente e com a mesma leveza e agilidade com que viera, voltou.
Trancou-se no seu quarto, acendeu o abajur e foi logo ligando a tv. Sem fazer muito barulho, abriu o embrulho, dando de cara com uma caixa preta e sem adornos, de um material duro e frio. Um pequeno pedaço de papel amaçado estava pregado na tampa da caixa, com os dizeres “para crianças desobedientes, carvão” em uma caligrafia esticada e apressada.
“Oh porra!”, pensou Gabriel, “fui pego...”
Abriu a caixa e nada viu em seu interior. O gato da vizinha começou a miar lamuriosamente. Tateou no interior escuro da caixa e estranhamente não conseguiu sentir o fundo. Sentiu um frio invadir seu quarto.
Passos pesados ecoaram pelo corredor. Alucinado, Gabriel apagou todas as luzes e se deitou, deixando a caixa aberta no chão e fingindo que estava dormindo. Os passos seguiram, começando a descer pela escada. O desespero tomou conta do menino, estava definitivamente encrencado.
Acendeu a lanterna de seu celular para procurar a caixa. Os passos continuavam a descer, mas faziam ruídos demais, como se a pessoa estivesse descendo os degraus pulando. Fez a lanterna cruzar o quarto e a luz bateu contra o espelho de seu guarda roupa.
Seu reflexo estava sorrindo.
Gabriel a princípio não notou, mas quando olhou mais atento, tomou um susto. Seus olhos estavam escuros, sua boca esticada num sorriso macabro. A visão durou alguns segundos e então sumiu.
Sem entender, Gabriel pegou a caixa e a tampou. Começou a botar o embrulho de volta, quando um baque veio da sala o fazendo pular de susto. Parecia que algo pesado havia batido em uma parede.
O som se repetiu, e de novo, e de novo. Uma pontada de medo percorreu sua mente. Mas então entendeu a situação. Seus pais estavam lhe pregando uma peça.
Saiu no corredor, silencioso e cauteloso, e viu que a porta do quarto de seus pais estava aberta. O som se repetiu. Gabriel avançou alguns passos e sentiu algo gelado sob seus pés. Um cheiro estranho estava impregnando o ar, um cheiro podre e nauseante.
Com a fraca luz do celular, o menino iluminou o chão, revelando uma água preta que se estendia por todo o corredor, como se algo grande e gosmento houvesse se arrastado por ali.
Assustado, pensou em voltar para seu quarto. Olhou para trás, e a pouca iluminação que vinha do quarto de seus pais revelou uma figura, parada, em frente a seu quarto. A sombra não se mexia nem dizia uma palavra, parecia apenas observá-lo.
Sentiu os pelos de seu corpo eriçando. O baque lá embaixo continuava. Sem saber o que fazer, o menino apenas continuou indo em direção a escada. O cheiro foi ficando ainda mais forte. Desceu alguns degraus e viu o cômodo todo iluminado de vermelho, com as luzes piscando de vez em quando.
Uma figura alta e esguia, usando uma camisola esfarrapada, se contorcia e se dobrava, batendo a cabeça contra a parede de tempos em tempos. Gabriel viu que era sua mãe. Parecia em transe, gemendo de uma forma doentia, entre espasmos estranho e bizarros.
Assustado, Gabriel pensou em voltar, mas a sombra agora estava mais perto. Seu coração acelerou. Desceu mais um degrau. Sua mãe bateu a cabeça ainda mais forte e começou a gritar.
— M-mãe, o que você tá fazendo? Isso não tem graça...
Ouviu passos atrás de si. A sombra se aproximava. Gabriel sentiu um medo forte, acendeu a lanterna mais uma vez, jogando a luz contra a sombra. Com medo, olhou primeiro para os pés, descalços e de unhas grandes. As pernas, grossas e peludas, uma cueca encardida, a barriga grande de tanta cerveja, o peito cabeludo. Era seu pai. A correntinha de ouro que ele nunca tirava, para dar sorte, e então... então... uma espiral de carne retorcida que misturava todo o seu rosto em uma confusão horrenda. Tudo estava esticado, se torcendo até formar uma espiral cujo centro era onde costumava ser o nariz.
Gritou e saltou os degraus restantes da escada. Viu sua mãe se contorcer em sua direção e gritou ainda mais. Se encolheu em um canto da sala, fechou os olhos o mais forte que conseguiu. Inconscientemente, se agarrou o mais forte que conseguiu a caixa que ainda carregava.
Com os olhos fechados como estava, sentiu a caixa vibrar com violência. Um braço monstruoso saiu de seu interior. Gabriel sentiu a mão apertando sua cabeça, sentiu unhas afiadas furando sua pele, sentiu sua cabeça sendo puxada com brutalidade para a pequena caixa.
Gabriel gritava, enquanto a mão o puxava com uma força terrível. Sentiu sua cabeça sendo esmagada pouco a pouco, a pele sendo repuxada, enquanto sufocava pelo aperto de chumbo daquela mão doentia. Nem mesmo seu grito conseguia escapar. Sangue jorrava quente, enquanto o impossível parecia acontecer, e a pequena caixa engolia o menino.
Quando Noel entrou na casa, se deparou com a cena grotesca. O chão cheio de lama, um homem gordo sem rosto, uma mulher com a testa rachada se contorcendo e um menino com a cabeça enfiada numa caixa bem pequena.
— Que diabos está fazendo, Krampus? Perdeu o pouco juízo de vez?
Toda a loucura que estava acontecendo pausou, e o silêncio reinou. Noel acendeu as luzes da casa, com um olhar indignado, procurando seu companheiro.
— Vamos, apareça seu demônio infeliz!
Noel retirou a cabeça do menino de dentro da caixa. Estava desmaiado. Krampus apareceu, um demônio alto, usando vestes de papai Noel esfarrapadas, com uma cara de bode e chifres enormes. Sua expressão era um misto de aborrecimento e divertimento.
— O menino desobedeceu aos pais e veio bisbilhotar o presente. – respondeu o demônio, com convicção
— E o que os pais fizeram? A quem esses dois desobedeceram? Você tem que dar um maldito susto nos endiabrados, seu retardado, não enfiar a cabeça deles em uma caixa!
— O menino está assustado...
— O menino está morrendo! E isso está uma tremenda bagunça!
O demônio pareceu diminuir de tamanho, visivelmente aborrecido com o sermão. Noel chamou por seus ajudantes, os pequenos duendes que vieram prontamente.
— Limpem essa bagunça, e tragam essas pessoas ao estado normal delas. Apaguem as memórias... deixem apenas uma sugestão de pesadelo no menino. — enquanto os duendes partiam para cumprir suas ordens, Noel se voltou a Krampus — Enquanto a você, infeliz, vamos indo. E não me faça uma loucura dessas de novo, se a cada criança acordada que encontrarmos você montar esse show de horrores, não vamos terminar esse natal a tempo! Um susto, e nada mais que isso!
Noel saiu a passos apressados e irritados, sendo seguido por Krampus. O demônio deu uma última olhada para a cena, orgulhoso de sua criatividade, e então, com a voz carregada de deboche, disse:
— Velho, se eu fosse você ficaria de olho nas renas, elas andam te olhando de um jeito estranho...