Eu nem me lembrava mais quando tinha ido parar lá, naquela espécie de teatro obscuro cheio de cadeiras quebradas, fétidas e vazias. Não existia iluminação alguma ali, exceto a do ardor malevolente que queimava em minhas retinas e me permitia enxergar um palco que havia muito além dos assentos, do outro lado de um extenso e profundo buraco de onde saía uma melodia taciturna, baixa e depressiva. A música parecia escavar o coração com uma picareta enferrujada nas mãos de um maníaco e enterrar a alma na mais intensa desolação como se faz com os indigentes no final do dia.
Ah... Era magnífica, simplesmente magnífica... Ouví-la era o mais elevado dos sadismos, a mais rara das provações. Provavelmente o próprio Diabo a tenha composto e a regia, os demais demônios fazendo as vezes da orquestra enquanto os torturados seguiam como um coral.
Entretanto, havia algo mais: uma garota encenava algo que mais parecia um pesadelo como que acompanhando o amargo compasso do som abissal. Seu movimentos fracos e sem cadência pareciam uma dança misturada com tentativa de suicídio confome rodopiava e sangrava em meio a um piso de madeira podre infestado de destroços, fantasmas e gelo. Ela própria era um arauto da auto-destruição; um tanto delgada como se estivesse doente, vestida em andrajos, com os pulsos rasgados e cabelos desgrenhados. Sua maquiagem eram olheiras no lugar de sombras, sujeira ao invés de rímel e sangue tingindo os lábios feito batom.
Era tão miserável que chegava a ser bela aos meus olhos vidrados.
Na escuridão daquele lugar onde poucos conseguem chegar e menos ainda permanecer, ela exibia seus espasmos e soluçar para mim enquanto prosseguia com aquele espetáculo deprimente e, à seu próprio modo, encantador. Vê-la se desfazendo era como assistir o lento falecimento de uma borboleta envenenada por alguma flor contaminada. A apatia de sua performace chegava a ser palpável e me atraiu feito as chamas do Inferno sugam as almas dos condenados.
E era isso que éramos: dois malditos condenados.
Vez ou outra ela falava ou mesmo sussurrava algo, mas era em outra língua de sonoridade refinada aos meus ouvidos ignorantes. Não a compreendia, mas podia sentir uma espécie de tristeza misturada com mensurável nojo. Parecia falar de si mesma. Talvez fosse do mundo. Ou de mim, pois por vezes apontava em minha direção com seu dedo esquálido e escarlate, gotejante. Depois voltava à performace doentiamente soturna, ignorando-me. Mas, eu não conseguia fazer o mesmo: na medida em que a garota se afastava, eu me aproximava mais e mais, contornando o Abismo entre nós dois sem sequer dar-me conta do que estava fazendo.
Meu olhar injetado vez ou outra fitava aqueles inóspitos olhares vazios. Uma ligação improvável e um tanto forte se formara a cada ato da exibição de modo grotesco e gradual. Era impensado. Era imprudente. Era inevitável.
Quando percebi, já não estava na platéia: estava nos bastidores. As cortinas empoeiradas tinham baixado, contudo de onde eu estava podia ver a artista ainda atuando. E ela vinha devagar em minha direção, tão vagarosamente que parecia ser seu ato derradeiro. Frente a frente, cada qual na sua beirada de Abismo, nas trevas, no silêncio, na expectativa de uma tragédia (ou apenas de um salto), permanecemos por muito, muito tempo.
Para a minha surpresa, em um dado momento ela gesticulou para mim, com um parco filete de lágrima escorrendo pela face bonita e cansada, convidando-me para participar daquela peça que ambos julgávamos saber como iria terminar. Mas, covarde como era, logo neguei o chamado: sabia que não estávamos no mesmo patamar do que quer que fosse necessário para pisar ali. Ela sorriu. Por Lúcifer, como era bonito aquele sorriso, mesmo tão infeliz e manchado de vermelho...
Senti meus olhos ardendo, como que excessivamente marejados. Então comecei a gargalhar, expondo todo o meu desespero conforme o som hediondo advindo de meu âmago necrosado estragava a canção que ululava pelo recinto sombrio. Ela apenas maneou a cabeça positivamente e continuou a sua dança, flertando com a queda enquanto injeria algo de um frasco e vomitava sobre si mesma. Enquanto isso, me sentei e voltei a assistir tudo de longe e calado, perdido em meus próprios e perigosos anseios.
E desde então tudo ficou ainda mais escuro, para mim e para ela. Mas, a música e a peça continuariam. A dor, a tristeza, o remorso e tudo o mais de ruim que nos permeava e nos manteria isolados e, ironicamente, unidos... Também.
Ao menos até que a Morte enfim encerrasse tão pesaroso espetáculo.