Na noite escura, uiva o lobo.
O vento gelado castiga nossos corpos fumegantes.
As línguas pendem das bocas, que expelem nuvens de vapor quente, condensado, que sobe e sobe, para muito além do céu, para muito além da noite escura. A noite é escura assim como está frio; está frio e nossos corpos fumegam, está frio e nossas pernas morrem.
O gelo cobre minhas patas machucadas, gruda em minhas unhas, gela meus olhos. Olhos tão azuis como a noite, tão azuis como o gelo, tão azuis como a morte.
Meus irmãos ofegam, arfam, sopram e fungam; choram e latem. Suas pernas morrem e o gelo cobre nossas patas machucadas. Ouço seus clamores, seus guinchos de súplica; olho em seus olhos e eles olham nos meus. Olhos azuis como o gelo que cobre nossas patas, olhos azuis como a morte.
A baía avança sobre nossas patas, sobre nossas pernas que morrem e queimam, sobre nossos corpos atados a cordas que esticam e que puxam. Em nossos ouvidos, uiva o vento. Na noite escura, uiva o lobo.
Doze latidos latem em coro; doze línguas pendem das bocas abertas, que latem e ganem e clamam. Os corpos fumegam na noite gelada, fumegam sobre a baía congelada, fumegam contra o vento cortante. Doze almas clamam pelo perdão, clamam a misericórdia do frio.
O gelo cobre nossas patas machucadas, que correm e morrem, que bambeiam e tropeçam. Duas dúzias de horas a fio para doze corpos cansados, fumegantes e cobertos de gelo, clamando pela misericórdia do frio.
Mas o frio não tem misericórdia.
Seus olhos olham os meus, olham o líder que os conduz pela baía; meus dedos queimam e sangram, e o gelo cobre o sangue de minhas patas. Seus choros choram e imploram, seus latidos pedem pela minha misericórdia.
Meu instinto treme; sacoleja o tutano de meus ossos exaustos, chacoalha meus músculos mortos. Num incrível lapso de energia, um espasmo sacode meu corpo, guiando-me pela baía, conduzindo-nos pelo gelo.
A grande baía, imersa na noite, lança-se diante de meus olhos cansados cobertos de gelo, gelo que cobre minhas patas sangrentas e machucadas. A gare da morte lança-se diante de meus olhos azuis, numa camada fina, frágil, mortal. Os ganidos clamam e os latidos imploram; seu instinto de matilha quer frear, e a inércia suicida se recusa a parar de correr.
Conduzo-os, guio-os, levo-os em silêncio, ouvindo suas súplicas que morrem no frio, ouvindo os passos e tropeços que seguem o Líder, quem lhes dará o golpe de misericórdia.
O gelo trinca sobre minhas patas machucadas; as cordas puxam, repuxam e esticam. Num frenesim insano, meus irmãos ganem, gritam, latem, enquanto o gelo trinca, quebra e se separa. As cordas puxam, enlaçam-se em minhas patas e me atiram ao chão; o gelo voa em meus olhos, espirra, estilhaça. O primeiro ganido de horror trinca a noite; o gelo se move sobre nossas patas, escorrega, desliza e se parte.
A grande geleira brame, ergue-se acima de minha cabeça com uma sombra; patas atingem meus olhos, meu focinho, meu corpo. As unhas espirram o gelo e a água; na noite escura, não enxergo mais nada.
Caído no chão, as patas pisam-me o corpo, as cordas puxam, sufocam e enforcam nossos pescoços, nossos corpos embebidos em pavor. A onda ruge; o trenó estala, tomba, fazendo voar o pequeno corpo compacto que lá se sentava. Os vultos lançam-se em minha visão; ganem e choram, gritam e latem. O gelo cobre meus olhos cegos.
A onda troveja, levanta e desaba; as placas descem e sobem. A baía trincada se partiu em mil pedaços, lançando gelo e água. O gelo e a água envolvem-me o corpo torcido, amarrado e enforcado.
Inerte, meus olhos acompanham os latidos de meus irmãos. Enrolados, sufocados, congelados; o gelo endurece seus corpos, que boiam na baía, guinchando por socorro, ganindo em desespero.
O frio me abraça, aperta-me o corpo, faz-me fechar os olhos. O gelo cobre meu corpo morto, que boia na baía dos cães mortos.