QUEM PODERIA IMAGINAR que Pitágoras estava categoricamente correto ao afirmar que os números carregam em si a lógica harmônica da existência humana? Se por um lado passamos a considerar a relatividade dos fatos, por outro nos deparamos com um obstáculo determinante sobre aquilo que, para nós, é limitado ou ilimitado. E então, ou a pessoa é, ou não é.
Bem, o problema é que muitos desconsideram a importância da quantitatividade da vida, e isso soa como uma ironia do universo. O determinado e o indeterminado são extremidades de uma constante, na qual a sua vida é uma simples esfera que gira de um lado para o outro. Somos formas geométricas de uma arte cubista, cujos olhos alheios — e eles sempre estão alheios — não conseguem interpretar.
No fim das contas tudo se resume em matemática. Os números sempre estiveram presentes na minha vida. Não estou fazendo referência ao dia em que nasci, horas ou minutos, nem ao acúmulo de prêmios e notas da escola. Cinco. Doze. Quatorze. Dez. Quatro. Sete. Antes mesmo da lembrança mais antiga que tenho da infância, sempre houve uma quantidade exata de comprimidos que minha mãe precisava consumir em um único dia. Para Pitágoras, ela faria parte de um microcosmo disfuncional que se distingue e é ocultado por um cosmo maior. Sem os remédios ela não podia ser.
E ela não sendo, então, o que sou eu?
Vejam bem, quando se conta uma história com base nas memórias mais importantes sobre um fato, de forma mais ou menos intensa a construção da narrativa corre o risco de se sustentar em retrospecto. As nossas lembranças se fundem com as lembranças de diálogos compartilhados por outras pessoas. Enquanto criança, a gente percebe as nuances emocionais dos adultos antes de conhecer o que promove suas atitudes. Recebemos primeiro o ódio e depois, talvez muitos e muitos anos depois, a informação sobre a origem daquele ódio. É por isso que eu conheci a história de trás para frente. A história do que eu tinha de errado, e ela começa bem antes de eu nascer.
Existem formas infinitas de se começar qualquer coisa. Um amor de verão pode ser contado desde o primeiro encontro do casal ou a partir do momento em que decidiram viajar para o mesmo destino. O que quero dizer é que em algum momento minha mãe estava aproveitando o carnaval daquele ano, vestida com lantejoulas amarelas, mas houve um amontoado de coisas que aconteceram antes desse momento e que igualmente poderiam representar o meu começo. Mas eu decidi iniciar daqui, pois aquele dia de carnaval sempre apareceu acompanhado de uma expressão de desdém cada vez que alguém decidia me presentear com sua opinião não solicitada da história. Era como se, ao abordar o assunto, o carnaval de repente se tornasse tóxico, proibido. Pobre do carnaval, que só fez existir.
Minha avó materna nunca foi feliz ao tentar amenizar seu ponto de vista. Acredito que nunca tenha tentado, para ser bastante sincero. Teve uma vez, em especial, que foi deveras sucinta ao encarar meus grandes olhos de oito anos de idade, e dizer que nada daria certo para nós.
— Uma coisa quando começa errada, vai continuar errada — dissera-me. — Sua mãe está doente e a culpa é completamente dela. Eu não tenho mais nada com isso.
É como eu disse, o fervor, o ódio e as palavras ásperas chegam primeiro. No dia em que enterraram o corpo esquelético e débil da minha mãe, minha avó foi a primeira a chorar. Se de remorso ou alívio eu nunca conseguirei saber.
Certo, estou contando ao contrário novamente. Vamos tentar de outra forma.
Eis aqui a história que eu consegui assimilar enquanto crescia, a história que mais pode se aproximar da verdadeira história, já que nem eu e nem as pessoas que me contaram estavam acompanhando mamãe naquela tarde de carnaval. Primeiro, era uma mulher sozinha curtindo um dia de alegria.
Dizer que ela estava sozinha foi opcional. Não é importante para mim. Quer dizer, que importa se era uma mulher e decidiu se divertir sozinha? Mas, para os outros, isso parece crucial, quase impróprio. Esse é só mais um apontamento na enorme lista de coisas erradas que ela teria cometido quando decidiu sair de casa. Há uma fala que revolve meus pensamentos de vez em quando, foi dita por uma tia avó distante:
— Ela estava com aquele vestido horrível, misericórdia! Mas já era de se esperar, sozinha, com uma roupa daquelas! Já estava perdida. Gente assim não vale nada.
O vestido em questão era assim mesmo. Espalhafatoso, brilhante, todo trabalhado com lantejoulas amarelas cintilantes. Quando tento imaginar uma mãe dez ou quinze anos mais jovem, com uma roupa dessas no carnaval, só me ocorre alguém vibrante, cheia de vida e alegria. Audaz. Acontece que a minha opinião não valia de nada. Eu não existia e as pessoas que existiam para ela apenas não concordavam que aquela roupa fosse considerada uma vestimenta.
Agora, as versões se confrontam. Alguns simplesmente me disseram que ela bebeu mais do que devia, muito mais, ao ponto de trançar as próprias pernas e vomitar na sarjeta. Outros apenas amenizam, sem discordar, que ela não era muito forte quando se tratava de álcool. No fim das contas o que todos queriam compartilhar de verdade era que ela estava bêbada.
— Toda a cidade viu, que vergonha! Estava caindo, com as pernas de fora — contou meu tio alguns anos após minha mãe falecer. Ele sempre gostou muito de usar figura de linguagem.
Não vou nem comentar como também nunca compreendi essa coisa da bebida ou das pernas expostas. Se alguém ingere álcool, é de se esperar que acabe embriagado, ou que as pernas estejam à vista se a pessoa utiliza uma roupa curta. O ser humano tem essa mania estranha de reafirmar coisas óbvias quando não concorda com elas.
Então retornamos para a matemática. Talvez tenha sido apenas um, talvez dez. Na mente da minha avó pelo menos metade da população masculina da cidade. Minha mãe engravidou de alguém, e por alguém eu quero dizer um desconhecido. E ela contraiu um vírus chamado de Imunodeficiência Humana, que desencadeia a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida. Nesses termos não parece tão ruim, mas quando a gente menciona a palavra AIDS, então as coisas saem do controle. A população gosta muito do termo infectada nesses casos, como se a pessoa fosse um zumbi ou coisa do tipo.
Tragédia. Carma. Castigo. Problema. Esses são outros termos que já ouvi para quem desenvolve a síndrome. Aprendi que o ser humano tem medo de palavras. Por isso meu tio deve gostar tanto de figuras de linguagem.
Um dia quando visitei a biblioteca municipal, encontrei um livro com vários diálogos de um filósofo. Platão. Por acaso ou destino, acabei por ler uma crítica sobre como as pessoas se aprisionam dentro da própria ignorância, dentro de cavernas escuras. Eu concordo com ele.
E sou bem feliz fora da caverna.
Minha mãe faleceu assim que eu completei quatorze anos. Foi uma tuberculose que a matou, mas é claro que ninguém menciona esse detalhe. Todos já sabiam do que ela sofria havia muitos anos.
Mas por que estou contando tudo isso?
Certo, eu queria entender quem sou eu.
Depois de muitos anos, eu passei a entender as coisas com mais maturidade. Tudo o que as pessoas contam, ou o que ficou gravado em suas memórias, é que minha mãe engravidou de um desconhecido por ter saído sozinha em um dia de carnaval, por ter bebido demais e estar usando um vestido chamativo. Que ela tinha uma doença trágica e contagiosa. E que ela morreu. Morreu por culpa própria.
Essa não é a verdade.
Ninguém conta como ela foi autossuficiente ao sair para se divertir em uma tarde de carnaval, ouvir um pouco de música regional e se distrair da vida tradicional a qual todos estamos dispostos. Que o carnaval em si não favoreceu a situação. Não se lembram que era livre para se relacionar com quem bem entendesse. Não recriminam os homens com quem se relacionou por dispensarem a proteção ou por não informarem sobre a doença que lhe transmitiram.
Ninguém conta que, ao descobrir que eu estava a caminho, ela se sujeitou a um tratamento intenso, se entupiu de medicamentos para garantir que eu tivesse outra condição de vida.
Preferem não lembrar. Não saber. Não considerar.
Então, quando alguém me pergunta quem sou eu, a resposta é bem simples. Eu sou uma aventura de carnaval. Sou um amontoado de lantejoulas amarelas, uns copos a mais e uma centena de remédios. Sou um microcosmo maior, que oculta os círculos nas obras de arte disformes. Sou a matemática da vida. Por que nada disso vai pesar nas memórias de outros, independente do que eu fale, ou faça. Por que é isso que interessa a alguém que, de verdade, não me interessa nem um pouco.
E você, quem é?
Autora: Letícia Garcia.