Joice abriu os olhos lentamente: a vista estava turva e obstruída pela sua própria bela, longa e cacheada cabeleira escura, a cabeça doía em uma leve vertigem, sua boca estava seca, amargando e... Machucada? Seu torpor passou tão rápido quanto a aceleração súbita que tomou conta de seu coração quando se deu conta que estava firmemente algemada e presa em uma espécie de poltrona com um pano fino e escuro envolvendo-a do pescoço para baixo.
Ela gritou um palavrão enquanto se sacudia violentamente tentando se soltar. Seu olhar frenético e furioso varreu o local onde estava presa enquanto tentava lembrar como diabos fora parar ali: era algum tipo de galpão em péssimo estado de conservação e iluminação, nos melhores moldes de Jogos Mortais ou O Albergue. Só nesse instante é que o fedor do lugar golpeou suas narinas com tal ímpeto que a fez ter ânsias. Gemidos abafados chegaram aos seus ouvidos junto com o som de goteiras e o zunido intermitente das escassas e falhas luminárias.
Confusão. Dor. Ansiedade. Medo.
Joice não estava sozinha: enquanto lutava para soltar-se e continha o autocontrole como podia, notou que a alguns metros de distância de seus flancos existiam mais dois amontoados cobertos integralmente por um extenso tecido. Não conseguia enxergar direito, mas os grunhidos vinham dali e eram um claro pedido de ajuda. Todavia, logo que a visão de Joice adaptou-se àquela obscuridade maldita, toda sua atenção desviou-se para o que estava diante dela.
O que não: quem.
Havia dois corpos femininos, desnudos, ensanguentados e inertes no meio do recinto, bem de frente para ela. Podia-se notar que ambos estavam emendados lateralmente um no outro por meio de uma costura grosseira existente das pernas até os ombros e o estado de putrefação já era suficiente para tornar o ar nauseabundo e os vermes começarem a vicejar. O olhar da carioca estava petrificado, suas pupilas dilatando-se ao máximo perante cada detalhe grotesco diante dela.
Uma das garotas, a de cabelos longos, lisos e pretos, tinha feições orientais na metade da face que lhe sobrara; a outra estava desfigurada como se seu outrora belo rosto tivesse sido arrastada no asfalto ao ponto de uma parte do crânio ficar exposta. Havia tantos cortes em todo o seu corpo que mal parecia que existiu pele ali um dia. Todavia, o mais chocante eram os buracos em seu ventre, que se revolvia como se estivesse vivo.
Um chifre tinha sido enfiado na cabeça dela, de modo que a ponta do mesmo saísse em sua testa. E na extremidade do mesmo, um pão encharcado de sangue deteriorava-se junto com a morta. Coroando o espetáculo, uma enorme ratazana preta saiu de dentro da barriga da falecida com um naco generoso de tripas entre os dentes, correndo de volta para as sombras enquanto os demais roedores continuavam a devorar-lhe as entranhas.
A outra jovem tinha incontáveis marcas de mordidas por todo o corpo, como se tivesse sido devorada com toda a paciência do mundo. Os seios foram extirpados com algo aquecido, pois queimaduras circundavam as horrendas lesões. As mãos, braços, pernas e pés estavam esmigalhados e torcidos em posições contrárias às naturais, com fraturas expostas e tudo o mais. No lugar de unhas, várias lascas de bambu e pregos dividiam espaço nos dedos da vítima. Todos eles.
Sua cabeça estava enfiada profundamente no próprio abdômen de modo que as vísceras ficaram pendendo junto com seus cabelos esverdeados, com facas fincadas nas órbitas vazias e igualmente carbonizadas, as hastes metálicas transpassando a parte retangular da armação dos óculos ali postos. Os fragmentos das lentes foram cuidadosamente fincados em toda a sua face, onde um telefone sem fio foi inserido em sua boca de tal forma e brutalidade que a mesma rasgou de orelha a orelha em um escárnio de sorriso digno do próprio Satã.
Quem quer que tivesse feito aquilo havia quebrado diversos ovos em seus crânios; as gemas apodrecidas formaram uma crosta imunda e fedorenta nas cabeleiras das garotas, o que atraiu ainda mais moscas e baratas para o festim macabro, todavia as criaturas foram mortas e largadas ao redor das falecidas como um mórbido enfeite. E ao finalmente se dar conta do grau de sadismo e insanidade com o qual estava lidando, as lágrimas e um jato de vômito irromperam de Joice, encerrando o potencial grito que fervilhava em seu âmago e banhando o tecido em seu colo com restos de lanche, fritas e refrigerante.
Enquanto ela tossia e cuspia aquela nojeira em meio a um resfolegar crescente, passos lentos e metódicos vindos das sombras foram encobertos pela cacofonia miserável da carioca, que ao erguer os olhos embaçados pelo lacrimejar nervoso viu algo que a fez sua pulsação acelerar um pouco mais: alguém entre ela e as garotas assassinadas estava encarando-a na penumbra... E esse alguém possuía o rosto sorridente de um demônio.