Um grupo de jovens se perdera há mais de uma semana durante uma trilha. Quatro rapazes e uma jovem tentavam sobreviver e buscar qualquer tipo de ajuda. O mais velho, que assumiu o posto de “líder” tentava incentivar seus amigos a não perderem a fé, pois certamente estavam lhes procurando.
— Você deve ser burro, Oto — o rapaz ruivo retrucou. — Éramos nove! E agora? Tivemos sorte de encontrar as sobras dos corpos de três, mas e os outros? O que pode ter acontecido? — O jovem expressava pavor enquanto passava as mãos em seu pescoço com certa brutalidade.
— Mike, se acalma! Acha que ficar nervoso vai resolver alguma coisa? — O rapaz mais alto esbravejou em resposta. — Nós não sabemos o que está acontecendo, mas sabemos que se ficarmos calmos e pensarmos — enfatizou — vamos conseguir sair dessa. Como eu disse, estão nos procurando! Tenha fé! — O rapaz abaixou a cabeça suspirando cansado.
— Eu acho que é um urso — a única menina do grupo se pronunciou. — Talvez se fizermos uma fogueira maior assuste ele. Ou ao menos desmotive ele... Sei lá.
— Não abra a boca para falar besteira, Liz — Mike, o ruivo disse — Mesmo um urso sendo forte o jeito que os corpos estavam não é trabalho de um único animal — disse com a voz amargurada.
— Tá, e o que você sugere, senhor especialista em cadáveres?
Mike a olhou com furor quando se lembrou do estado lastimável que o corpo de sua namorada fora encontrado. Ele estava junto com outros dois rapazes — que estavam vivos há semanas atrás — a procurar a jovem na mata quando a encontrou. E preferia não tê-la encontrado. O que antes era seu rosto se tornou um misto de sangue seco com ossos expostos e algumas entranhas misturadas de uma forma asquerosa. O que antes era seu corpo naquele momento era algo perturbador. As únicas partes “intactas” eram o antebraço direito e alguns tufos de cabelo preto levemente ensanguentados perto do que deveria ser sua cabeça. Sorte que o jovem estava acompanhado, pois quando viu o estado da menina entrou em choque. Desde o ocorrido, Mike não era o mesmo. Antes, um rapaz tranquilo e sensato agora era alguém negativo e quando não estava falando em quão perdidos estavam estava calado a olhar o nada sem piscar. Louco.
Percebendo o silêncio perturbador de Mike, James, irmão do líder e melhor amigo de Mike interviu:
— Vamos fazer o melhor que pudermos. Descobrir o que está nos comendo é uma boa ideia, mas gastar tempo inutilmente enquanto poderíamos estar fortalecendo o local, ou procurando mais comida...
— James tem razão. Liz, você vem comigo. Vamos tratar de deixar esses galhos afiados. Mike e James vocês são os responsáveis de preparar o jantar hoje — disse apontando para dois esquilos dependurados numa árvore próxima ao grupo.
Os dois jovens caminharam até os falecidos animais. James bufava chateado e Mike permanecia calado.
— Ah, seria tão fácil se depois de matar os animais eles magicamente tivessem o pelo arrancado e se cortassem em bifinhos... — James disse na tentativa de provocar alguma reação em seu amigo.
— Idiota. O que é trucidar um esquilo morto depois do que vimos? Sorte a deles, pois não vão sentir dor, mas como será que foi com nossos amigos? — James terminou a frase arrancando a cabeça do animal com pura força bruta.
— Isso foi... — os olhos de James brilharam. — Nojento! – Pôs a mão na boca com uma expressão desagradável.
Mike não se importou e continuou seu trabalho munido de uma faca nada afiada para tirar o pelo do animal.
Mais atrás, sentados numa pedra, Oto e Liz afiavam alguns galhos enquanto conversavam sobre possibilidades:
— Eu concordo com o Mike, Liz. Eu vi os corpos e se você tivesse visto saberia... Bem, até pode ser um único animal, mas qual animal carnívoro faria algo daquele tipo? Foi cruel e desnecessário. Acredite em mim — Suspirou tentando não imaginar.
— Bem, você falando agora eu até acredito... — Disse preocupada.
— Mas eu acho válido a ideia de uma fogueira maior ou várias distribuídas. Talvez assuste o animal.
Várias noites se passaram, o lugar onde os jovens habitavam já estava deveras fortificado com estacas pontudas, armadilhas mortais (em tese), e bem iluminado (mesmo de dia). Era o melhor que quatro jovens aventureiros podiam fazer, entretanto, o medo os apavorava cada dia mais.
Mesmo que ninguém tenha morrido até então, os jovens livres por essência não gostavam do sentimento de estarem presos. Era cada vez mais difícil caçar, visto que os animais notando tamanha movimentação evitavam os arredores, e ninguém queria se arriscar caminhar além. A fome e sede foram gradualmente se tornando constante. Mike que já não estava em sua completa sanidade e com fome era semelhante a um animal. Quando não estava urrando e provocando seus colegas estava a comer grama e chorar enquanto o fazia. James ficava todo o tempo em seu canto cabisbaixo e com a mão na barriga. Certa vez sugeriu aos colegas de procurarem insetos, mas ninguém tinha atingido aquele nível de desespero. Ainda não. Liz não disfarçava seu medo, mas do grupo era a que já tinha se entregado. Esperava a morte conformada. Oto repetia em sua cabeça que era necessário aos outros e por essa razão não poderia fraquejar, mas em seu interior a fome era maior que sua racionalidade.
— Oto, já se passaram tantos dias e não tivemos sequer um sinal que a fera esteja perto. É provável que tenha ido caçar em outro lugar, você não acha? — James disse.
— Eu... — seu estômago o interrompeu — Eu acho provável. Precisamos pensar em algo...
— Precisamos comer! Ir caçar!
— Sim, justamente nisso. Não podemos deixar ninguém aqui. Mas se levarmos a Liz ela será um peso morto, visto que além de estar fraca não tem mais esperanças... E Mike... Bem, Mike está daquele jeito. Enquanto ele não comer algo nutritivo ele não vai ser alguém útil.
— É verdade... — James suspirou — Então façamos assim: Você permanece aqui com a Liz enquanto eu vou com Mike procurar nos arredores qualquer coisa que encha nossas barrigas. Nem que eu traga insetos... — James franziu a sobrancelha.
— Mas Mike só vai atrapalhar. Ou você acha que ele vai andar silencioso?
— Mike está insano, mas ele ainda é meu amigo. Eu vou acalmar ele — Disse convicto.
— Se você diz...
— Certo. Voltaremos antes de anoitecer.
Oto observou James caminhar até Mike. James segurava Mike pelos ombros e o olhava nos olhos enquanto dizia convicto. Mike virou a cabeça de um lado e permaneceu quieto. Oto se surpreendeu com isso. De fato, James pôde acalmar o insano, mas logo sua surpresa se transformou em um riso sem humor quando ouviu o berro do ruivo gritando coisas sem sentido.
James olhou para o Oto e fez um gesto desapontado. Até que gesticulou que iria só. Antes que Oto pudesse ir até ele para impedir, ele saiu correndo mais rápido do que deveria para um jovem mal alimentado. Por mais que Oto se preocupasse com seu irmão, estava entregue a necessidade. No seu interior a fome e a esperança que ele lhe trouxesse algo era maior que o dever de irmão mais velho e orgulho de líder. Era humano, afinal.
Horas se passaram e James não havia retornado. Pelos que as árvores permitiam ver, estava perto dos últimos raios solares se acabarem. No abrigo, Mike vomitava grama e cascas de árvore enquanto Liz dormia e Oto andava lado freneticamente odiando a si mesmo.
“Como eu pude ser tão fraco? Deixar meu irmão mais novo andar sozinho na floresta? Tudo bem que ele sempre foi o melhor rastreador do nosso grupo de trilha, mas ainda sim ele...”. O rapaz respirava alto enquanto puxava seus próprios cabelos. “O que eu devo fazer? Estou com medo... De morrer e de perder meu irmão”. Sentou no chão encostado em uma árvore enquanto se perdia em pensamentos.
A noite já havia se achegado. Inoportuna, mas era inevitável.
— Oto... — Atrás das árvores esse nome fora pronunciado.
Oto levantou o rosto e olhou para trás. “Será minha imaginação?”, pensava. Permaneceu olhando incrédulo para as árvores na medida em que a escuridão permitia.
— OTO! SOCORRO! — O nome se tornou audível. Era a voz de James. Suplicando ajuda por alguma razão que Oto temia descobrir.
O rapaz se levantou e caminhou até o centro da fogueira:
— Mike, vem comigo! — Disse pegando a última faca afiada que restava.
Mike o olhou, levantou e caminhou até Oto. Quando estava frente a frente cuspiu no rapaz toda a grama e terra que havia em sua bochecha. Oto bem que queria reclamar ou socar o rosto do garoto, mas ele estava muito louco para merecer qualquer dessas coisas. Arrastou o louco para dentro do abrigo de folhas — uma espécie de casebre onde os jovens haviam feito algo que deveria servir de cama para que dormissem protegidos do friagem noturna.
Pegou outras facas sem fio e correu até onde ouvira a voz de James. “Espero que para furar essas facas sirvam”.
Correu alguns metros e logo diminuiu a velocidade.
— James? — Chamou apreensivo.
Olhou para trás e notava um fraco chamuscar de luz. Estava relativamente longe do abrigo, mas pelo que lhe restava de orgulho seguiu em frente. Com a faca afiada em punho caminhava passo por passo olhando atentamente. Nenhum vestígio de seu irmão ou qualquer outra coisa. Nenhuma das ausências era boa. Adiante ouviu um pequeno estalar. Reuniu toda a coragem que tinha e correu em direção, mas era apenas uma cobra. Se fosse em outra ocasião ela serviria de jantar, mas nesse momento tudo que Oto pensava era em encontrar seu irmão.
Um misto de alegria e desespero surgia no coração do rapaz. A sua frente, preso em galhos estavam farrapos da roupa que James usava. Oto não sabia se isso era bom. Ignorou suas pernas bambas e seguiu cada vez mais apreensivo.
Juntamente com os sons típicos da mata outro som preencheu os ouvidos de Oto. Quisera ele que fosse sons de animais ou o vento batendo nas folhas. O som que interrompeu a tranquilidade na madrugada eram gritos. Gritos de pavor.
Oto olhou para trás, em direção ao abrigo. O som infelizmente vinha de lá. Olhou para frente e apertou seu peito em desespero. Devia ir até onde ouvira a voz de seu irmão ou ir até o abrigo? Relutante, e torcendo para ser uma crise de Mike, ele correu em direção ao abrigo.
A atmosfera no local estava aterrorizante. Oto transpirava mesmo com a noite fria. Sua pupila dilatada e seu corpo trêmulo denunciavam o temor que o jovem sentia. Caminhou lentamente perto da fogueira indo em direção ao casebre. Não quis arriscar chamar pelos companheiros, por alguma razão. Tentava crer que Mike devia ter finalmente morrido entupido depois de comer tanta terra e grama. Tentava crer de qualquer forma que aqueles gritos foram por causa de uma aranha ou cobra que subiu na cama improvisada de Liz. Mas não era.
O jovem estático permanecia a olhar fixamente para o que poderia ser descrito como “vermelho”. Em suas narinas o cheiro metálico incomodava sua respiração. Por toda a parte, em cada galho, folha ou corda havia sangue. Muito sangue. No chão, perto de onde Liz dormia, havia uma enorme poça do de sangue. Oto estava aterrorizado. Sobre a cama apenas vestígios do que antes era a jovem menina. Pedaços de tripas, carne, tufos de cabelo, uma ou duas pontas de dedos e outras partes que Oto não conseguiu ver. Vomitou de asco e desespero a água que havia em seu estômago. Aquilo não devia ser real. Não podia. Oto sentiu os olhos encherem de lágrimas. Onde estava Mike? Ele tinha certeza que havia o deixado junto a Liz.
— Será que... — Oto não quis sequer terminar a frase. Mike não poderia estar “ali”. — Sim, ele certamente correu. Preciso encontra-lo. — Oto tentava de todas as formas se manter são. Virou as costas e pelos céus desejava não ter tido aquela outra visão.
Há poucos metros estava Mike. Decapitado e dependurado pelo braço. O que o segurava era algo que nem o diabo se atreveria a olhar. Uma criatura horrenda cujos braços eram grandes ao ponto de quase encostar no chão. Sua pele tinha cor semelhante ao chorume e a criatura fedia a sangue podre. Suas pernas eram semelhantes às patas traseiras de animais quadrupedes, embora se sustentasse em duas. Sua cabeça era desproporcional ao tamanho do tronco. De sua boca e dentes afiados gotejavam como chuva torrencial o sangue do jovem que estava preso pelo braço. A criatura de olhos cor de sangue olhava para Oto ensandecida. Como se dissesse: “Você parece delicioso”. Soltou o braço do rapaz e o devorou com voracidade em um piscar de olhos.
Oto só via as tripas de seu amigo colorirem de vermelho as folhas ao redor. A boca e parte do focinho do monstro completamente pintadas pelo líquido carmesim. Terminada a refeição, a criatura levantou suas orelhas pontudas e elevou seu focinho aguçando as narinas. Oto olhava a cena completamente em choque. Largou a faca no chão e ajoelhou derrotado observando a criatura se aproximar passo por passo.
Por um segundo a criatura hesitou. Oto esperava e desejava que a fera o comesse rápido o suficiente para que ele não sentisse dor. O besta abaixou suas orelhas como um cão entristecido emitindo sons que se assemelhavam a um resmungo triste.
— Me... Me perdoe, irmão, mas eu odeio ficar com fome. Eu não queria comer vocês, mas... Eu não tinha mais escolha.
Aquela frase dita com uma voz demoníaca fora a última coisa que Oto ouviu antes de ter sua cabeça arrancada por uma mordida violenta da criatura.