Era outono, meados de 2015, nas terras distantes do Rio de Janeiro. A notícia chegava como um tsunami de sentires, com seus valores morais ameaçados, ele continuava a acreditar no bem. A primeira notícia logo deu-se estrondosamente infeliz: a perda das pernas, as diabetes já não vão mais deixar ele andar, ainda assim, coitado que era, ele acreditava que Deus ajudaria de alguma forma.
Aos poucos a noção de que não andaria mais como antes, ficaria sentado o dia todo não porque quisesse, mas por invalidez das pernas tomava-lhe a cabeça. Certo momento antes da cirurgia de amputação, olhou para os céus, rezou e disse para si que não perderia as pernas, como pensava todos os dias até o maldito momento, sentiu-se então tonto e fechou os olhos, mas não para a eternidade, pois, a vida é triste e o tempo faz questão de o devorar aos poucos.
O indivíduo acordou do seu pesadelo, mas por ironia do destino, as pernas não sumiram, logo bravejou e disse “obrigado, Pai”… A verdade é que o delírio da anestesia ainda surtia efeito e pernas, ele já não tinha mais; só a lembrança dos tempos de moleque que corria atrás de pipas e jogava bola. Apercebeu-se do acontecido e chorou, chorou como uma criança enfadonha, como quem estivesse vendo ali, a morte de seu próprio filho e o desespero, a falta de sentir, a apatia incorporou a ele. Ainda assim, a esperança brilha e o médico diz “as pernas saíram, a vida não, você ainda tem muito a viver”, a podridão do nada deixa, a situação deixa de ser irremediável e passa a pensar em Olimpíadas Paralímpicas, uma medalha de ouro em algum esporte, talvez.
E então, a segunda notícia devastadora chega para assolar uma vida esperançosa, do futuro medalhista: não era diabetes e o diagnóstico foi errado. A apatia volta a tomar a si, em si e para si, como se nada mais fizesse sentido, médicos, diagnósticos, remédios, a vida, só Deus não entrou em colapso no seu coração. O maldito tratamento que ele fizera a vida toda, na verdade era um engano, um temível engano, seu nome, que não falaremos aqui, era daqueles comuns e um sujeito que nasceu no mesmo mês e ano, com o mesmo nome, foi diagnosticado com diabetes, lá pelas bandas de 2011, as fichas foram trocadas e apesar de os exames que sucederam a vida do pobre coitado negarem qualquer diabetes, o outro sujeito continuaria indo ao médico. Com toda a certeza, uma história inacreditável, impossível… Assim pensavam até ele, ainda assim, Deus guardara algo para ele, ele sabia disso, não seria possível tal erro ser em vão, ser humano, demasiado humano, era metafísico, era impossível ser isento de sentido. A razão agora, era a de que ele fora o escolhido por Deus mesmo que tudo provasse que não passara de um erro médico.
Em certo momento, começou a estudar a oratória, a retórica, a fala num todo para se especializar em palestras, pois a medalha olímpica já não era mais possível, sabendo do seu papel enquanto enviado e escolhido por Deus. A partir de agora, chamaremos ele de N. As igrejas aproximaram-se após ele ter enviado para mais de 100 contatos via e-mail sua grande história de vida, essa história de que mesmo sem qualquer indício de que há, de fato, algum sentido para o que acontecera a ele, a metafísica vem a cumprir o papel de transmutador na vida de alguém. As emissoras de televisão evangélicas ligaram para sua casa como se fossem amigos conhecidos há muito tempo, sua história renderia alguma audiência para seus programas matinais, aqueles onde fala-se nos absurdos e nos sensacionalismos como se tudo fosse saudável. É de se esperar que tal sujeito, realmente, fosse tão esperançoso. De diabético a amputado, de amputado a Enviado.
A ironia do destino, da vida, do não metafísico, da vida, sorriu. A terceira e última notícia vem como se bombas fossem largadas sob sua cabeça. Ele ia morrer. Antes que o metafísico, a moral, a esperança o condenasse a uma vida com sentido condicionado ao falso, ao imaterial, ao que não existe, ao que se é imposto, ele condena a vida. O que fez ele mudar tão repentinamente? Pela primeira vez em sua existência ínfima, ele teve tempo para pensar na vida de fato como ela é, a compreensão de que ele era o errado logo toma posse de seu corpo. A falta do sentir agora é intrínseca ao pensar e o pensar faz com que cada vez mais, a cada momento que se passa, ele consiga se livrar de tudo aquilo que pensou ser a vontade própria.
As igrejas, mortas e queimadas. A grande mídia, censurada e fuzilada. A cada ligação, xingamentos. A cada cumprimento, violência. Os parentes, ignorados. Os sentimentos, superados. Seus valores, aniquilados. Agora ele estava pronto para viver. Então ele olha para o céu e entende que nada o ajudaria. Então ele respira, pensa e conclui que viver somente se daria no nada, e o nada, só se daria na morte. A morte é a salvação.
Guardado em seu quarto havia um .38, duas balas e a vontade do nada. A arma é carregada, o cano fica por entre o céu de sua boca e a garganta, os olhos fecham, o sorriso vem e o gatilho é apertado não uma, mas três vezes… A arma falha.