Corra, corra
6 de Janeiro
Tipo: Conto ou Crônica
Postado: 22/04/17 19:16
Avaliação: 9.13
Tempo de Leitura: 12min a 16min
Apreciadores: 4
Comentários: 2
Total de Visualizações: 1408
Usuários que Visualizaram: 12
Palavras: 1942
Não recomendado para menores de dezesseis anos
Notas de Cabeçalho

Vou lhes contar a história do menino que encontrei gritando por debaixo do piso da minha cozinha. Espero que vocês não estejam jantando agora...

Capítulo Único Corra, corra

Numa escuridão, não tão permanente como deveria ser, havia um garoto, retrato perfeito da miséria, rei dos tolos; criança barriguda de nariz escorrendo em verde vivo, cabelos embaraçados dominados por uma população de piolhos que lhe comiam do escalpo até as bochechas.

O garoto viva perto do porto, aqueles tipos de portos com faróis gigantes, barcos podres no ventre das pontes, gaivotas assassinas de olhos e toda a bizarrice que se pode imaginar. Ele era especial.

Era.

"Eu quero correr..." - foram as últimas palavras sorridentes dele, enquanto seus olhos sangrando, encaravam a coisa que estava iluminada, paralisada, amigável.

"Desejo atendido." - ditas estas palavras, o bicho gemeu, derreteu-se por completo e sumiu. O garoto, amarrado à mesa olhou para todas as direções tantas vezes que seus nervos oculares quase deram nó.

Bastaram segundos para que ele ouvisse os passos molhados e pegajosos pelos corredores escuros - de onde eles vinham? - O garoto pode sentir um certo vento ligeiro, que parou de soprar junto com os passos pesados.

Algo parecia pular pelas paredes e pelo teto. O suor na testa de Olivier estava tão frio que seu queixo tremia.

"Reivilo? - o garoto em pensamento, pois sua língua estava petrificada. Reivilo?". - seu coração tiquetaqueou dentro do peito, apertado.

Um feixe de luz surgiu, suficiente para que o menino pudesse ver a gosma subindo pelo ralo e se transformando novamente naquela estátua cinza e gordinha, tão agradável aos olhos infantis.

"Não consegue me deixar me paz? Já lhe dei o que queria." - então, todas as luzes se acenderam e o menino, apavorado, vomitou o que já não tinha em seu estômago, ao ver, agitadas, suas pernas, ainda vestidas com a calça listrada, suja de sangue. Elas estavam contentes ao reencontrá-lo.

"Não está mais feliz? Posso costurá-las para você e então, poderá correr de novo".

Olivier estava paralisado, teria se urinado se ainda tivesse o órgão, teria gritado se ainda soubesse como pedir por socorro, teria evitado este fim sádico, se não fosse por aquele dia no porto... Aquele dia comum, com as mesmas pessoas e os mesmos pensamentos... Teria evitado? Como?

Porto de Alsbury - Dois dias atrás.

"Saia daqui, seu moleque!" - uma senhora que não perdia uma só missa, arremessou água fria no rosto do garoto, logo pela manhã, o expulsando do beco, o único lugar ainda seco depois do temporal.

"Deus te abençoe". - no fundo ele queria arrancar as unhas dela uma a uma, mas uma mãe que ele tivera há muitos anos atrás, o ensinou como lidar com pessoas tempestuosas.

Ele saiu correndo, com suas coisinhas, sua manta, seus anzóis, duas moedas, um pente, um vidro de creme, meias furadas, sua panelinha de ferro com colher e copo de alumínio. Pelas ruas ele corria, e com o balangar de seus pertences barulhentos, foi acordando todos os cães que logo entonavam junto com os apitos dos barcos, as dobradiças das portas, o ronco dos motores, os gritos dos açougueiros e por fim, com o despertar da cidade.

Olivier correu muito naquela manhã, como nunca havia corrido, ele sentia dentro de si uma força incompreensível, era como em um pesadelo, aonde ele descia montanhas correndo e jamais conseguia parar, seus pés o comandavam - e estava acontecendo, agora de verdade, ele atravessava as pontes, cortava os carros, fugia dos cachorros e não se cansava, seus pés continuavam e já ardiam e coçavam e seu calcanhar parecia querer rachar, mas não cessava. Não podia.

"Socorro!" - ele começou a ficar apavorado, tentou cair no chão, ou ser atropelado, mas suas pernas trabalhavam contra, não queriam mais ser submissas, queriam ser chefes do corpo do menino, afinal, eram elas que faziam tudo, no entanto, Olivier não se lembrava delas nem na hora do banho.

O menino, à medida dos quilômetros que iam se percorrendo contra sua vontade, se apavorava mais e mais, não tinha como acreditar que era verdade! Era impossível! Era contra as leis humanas! E ele cria nisso cada vez mais, e creu mais fervorosamente quando se viu indo para a beira de um abismo que daria para o mar.

Tentou frear.

Em vão.

Sua garganta gritou, sua úvula tremeu tanto dentro da boca, que ele até gorfou... Foi então, que aconteceu o improvável.

Suas pernas passaram a correr no ar.

"Nãããããããããão!" - ele chorava, suas costas ardiam, suas pernas queriam esfarelar, estavam elas arrependidas?

"Alguém me salve! Alguém me salve!" - implorou.

Suas pernas ainda disparavam, só que agora, estava tudo muito silencioso, aquele tipo de silêncio que te faz tremer.

Foi a primeira tarefa.

"Continue correndo, quando chegar na praia, entre na cabana azul".

Mais que depressa suas pernas obedeceram a voz que surgiu na pontinha da orelha do menino.

"O que está acontecendo?" - ele lamentava enquanto chacoalhava pelos ares.

Ao que parece ele desmaiou nos ares, é óbvio que suas pernas continuaram o levando, como uma marionete, até elas encontrarem a praia, e irem em direção à cabana azul.

Ele aterrissou dolorosamente, torcendo o pescoço, prensando seu lombo no chão duro e arenoso.

"Uff-Uffff" - cuspiu a areia.

Suas pernas estavam dormentes agora e muitíssimo quentes, como caldeira de navio. Doía horrores. Seus olhos meigos e pobres pairaram por sobre um amontoado de pano e plástico azul desbotado, bem atrás dele. Parecia ter sido uma cabana algum dia; ele não era mais capaz de saber o que era real ou não, por isto, se enfiou por debaixo dos panos e se viu na beirada de um buraco estreito e negro.

Respirou fundo.

"Me ajuuuuuuuude!" - uma mão cinza petrificada alcançou as mãos dele, desta vez, ele vomitou, e se urinou, e suas pernas arderam e ele sentiu que estava perto de algo que só ele conheceria e ninguém mais, o que o fez ter uma pontada de coragem.

"Como?" - ele indagou para a escuridão.

A mão cinza se esticou, abraçando toda a escuridão e fez uma concha com a palma, assim sendo, o menino de pôs sentado bem no centro da palma. E desceu. Por longos minutos. Seus olhos tentaram reconhecer alguma forma no escuro, ele passou suas mãos nas paredes do abismo e elas eram enrugadas... Um motivo surgiu em seu peito: Não faça isso. Ele obedeceu, como o bom menino que era.

Fechou os olhos e sentiu o impacto.

Barulho de ossos se quebrando, no entanto, nenhuma dor, só agonia e... Então... Uma certa felicidade... Prazer, gozo, contentamento... Ele estava leve, se sentia molhado, começou a rir e suas gargalhadas tomaram todo o túnel, o som rebatia nas paredes que desmancharam, os pedaços da parede dançavam pelo ar, batendo na cabeça do garoto, arrancando lascas de sua pele, mas era tudo tão divertido! Tão genial! Ele não parava de gargalhar e gargalhava cada vez mais.

"Meu nome é... Hm... Reivilo, e... Eu quero te fazer feliz, ria, vamos, ria, obrigado por me ajudar garoto! Ria! Ria!" - uma voz deleitável beijou o rosto do menininho mirrado, confortou-o como as vozes de fantoches confortam todo órfão num domingo qualquer.

"Isso é tão divertido! Eu nem mesmo posso sentir minhas pernas, eu jurava que elas estavam ardendo muito! Eu nem sequer posso sentir meu cheiro, eu jurava que tinha me vomitado inteiro..."

"É um mistério, Olivier, querido, um mistério divertido! Como a vida é divertida!" - a voz rugiu gentilmente, fazendo todas as luzes se acenderem.

Maravilhado o menino se viu num palácio dourado, com uvas, balões e muita, muita água, caindo pelas paredes como cachoeiras encantadas.

Lá embaixo, muitos meninos e meninas brincando de roda. Um sino soou, e toda a meninada aplaudiu, fizeram surgir do chão uma vasta mesa, cheia de pratos coloridos, porém, não havia comida nenhuma sendo servida.

Uma a uma, as crianças foram se sentando, fecharam os olhos e viraram suas cabeças para cima, em direção à Olivier, que vinha vindo segundo por segundo, calmamente, rindo, degustando uma uvinha ou outra.

"Oh, como é bom tê-lo aqui!" - o garoto avistou Reivilo pela primeira vez, era uma estátua gorducha, com bochechas parecendo bombons, um bumbum gordo como balões, pantufas e roupa de dormir, tudo feito de pedra, mas ele era tão abraçável que Olivier não via a hora do braço enorme ir encolhendo mais rápido para ele poder abraçar aquela estátua magnífica com todo seu amor.

"Não, não, não, não se apresse meu amiguinho!" - Reivilo já estava bem mais perto do garoto, o braço da estátua ia diminuindo consideravelmente, assim como a mão que sustentava o garoto. - "Não, não se apresse companheirinho!" - as crianças fizeram um coro suave.

A mão ia diminuindo, diminuindo, o menino já era capaz tocar o topo da cabeça das crianças, e bastou uma piscadela para a estátua estar com um braço do tamanho normal de estátua e Olivier agarrá-la num abraço.

"Obrigado, obrigado, obrig..." - Olivier olhou para baixo e viu que havia uma poça de sangue negro. - "O quê..." - ele começou a se sentir tonto. - "Minhas pernas..." - ele estava sem elas, começou a procurá-las, seus olhos cansaram de tanto percorrerem o salão... Ele não as encontrou. Começou a sentir um medo real.

Não tinha mais graça.

Ele se sentia fraco demais para sequer perguntar por elas.

"Ria, ria!" - Reivilo bateu palmas e as crianças gargalharam monstruosas, suas faces esguicharam, uma a uma foi desaparecendo, as roupas ficaram frouxas, logo todos ali não passavam de amontados de panos.

"Não, não tem mais graça, estou com dor, com muita... Muita dor..." - o menininho arfava, apavorado demais para chorar.

Reivilo depositou o corpo do garotinho numa bandeja gigante. A criatura então começou a borbulhar. "Você tem de estar feliz, senão não há como me ajudar!" - o molequinho começou a gargalhar, seu coraçãozinho se esquentou, ele se sentia bonito por dentro, feliz, completo, nem se lembrava mais de como havia chegado ali, ou que, há alguns míseros segundos atrás, ele estava procurando suas pernas.

"Obrigado, obrigado, você é o melhor do mundo Reivilo, fomos feitos um para o outro!" - o menino mandou beijinhos para a estátua, que, agora, não era mais estátua, estava mais para massa, esticando como chiclete, deixando a mostra seus milhares de dentes branquinhos e enfileirados, abandonando aquela forma tosca de marfim.

"HUHUHU, isso é música para meus ouvidos!" - a criatura aplaudia sem cessar, logo as crianças retornaram, preencheram suas roupas, suas perucas e lugares, cada qual com seu garfo e faca, começaram a fazer uma sinfonia absurda, batendo-os fervorosamente na mesa de madeira.

"Comida, comida, comida, comida!" - elas gritavam, pulavam, arrotavam, começaram a brigar.

"Vocês são uns amores, uns amores!" - Olivier, havia sido despido pelos dedos melecados de Reivilo. Olivier tremia, e se contorcia para todos verem.

Um êxtase, um espetáculo.

"Un buen almuerzo!" - Reivilo foi devorando as partes de Olivier uma a uma, as pontas dos dedos, o tronco todo, o menino cuspia sangue, milagrosamente consciente, milagrosamente não, era uma maldição.

Tudo ficou escuro.

As risadas ainda rondavam a mente do menino.

Toda a dor, o sangue, o ardor, o som dos ossos se quebrando, havia tudo sido tão, mais tão divertido...

Olivier tentou se mexer, mas só sangrou mais e aquele odor o fez ficar tonto. Estava amarrado à mesa.

Se sentia feliz, porém, estava com saudade de suas pernas, suas velhas amigas, que correram com ele, que o levaram para aquele lugar misterioso e jamais compreendido... Aonde estavam elas?

Ooooooh, que dor! Tenaz! Os cotocos do menino ainda se sentiam conectados com as mãos que agora repousavam no estômago de Reivilo.

"Eu quero correr..." - foram as últimas palavras sorridentes dele, enquanto seus olhos sangrando, encaravam a coisa que estava iluminada, paralisada, amigável.

...

O som de suas próprias pernas marchando no tablado, foi a última coisa que o menino ouviu, antes de padecer, sucumbir às presas da fera, que o fizera se divertir tanto naquele dia, como ele nunca antes, havia.

❖❖❖
Notas de Rodapé

Olivier descansa em paz em alguma privada feita de balões e confetes.

Sinto muito se isso foi desgostoso de alguma forma, mas eles se divertiram tanto!

HAHAHAHA

EU MESMA NÃO CONSIGO PARA DE RIR! HAHAHAHA

Por favor, não corram esta noite, não...

HAHAHAHA

*socorro!*

Apreciadores (4)
Comentários (2)
Postado 02/05/17 13:52

A narração chega a causar agonia! Tudo foi tão bem detalhado que as imagens fluíam rapidamente pelos meus olhos/minha mente. Sério, pareceu ser tão real que eu quase não acreditei no que via/lia.

Doentio e... Divertido! Não sei exatamente o que sentir pelo Oliver, apenas sei que o desejo dele de alguma forma distorcida e meio absurda foi atendida. Ele deveria ter ficado feliz... ou ele ficou e não quis demonstrar. Sempre há essa possibilidade, certo?

É um ótimo texto! Parabéns!

Postado 03/05/17 15:23

Olha, eu tamém não faço ideia do que o Oliver sente, de verdade, ele ainda está embaralhado, espero que um dia ele conte essa história de novo, mais bem esclarecida! Ajsiajsiasaoisj muito obrigada! <3

Postado 12/09/17 23:43

Sinistro! Completamente sinistro! Mesmo assim, não fui capaz de parar de ler, nem tirar os olhos, nem pra pegar um doce (e olha que eu adoro doces...)

Envolvente, mas isso não quer dizer necessariamente que a história seja algo literalmente legal, já que ela é sinistra.

Mas curti, de fato.

#ad01 - 06/90

Outras obras de 6 de Janeiro

Outras obras do gênero Mistério

Outras obras do gênero Sobrenatural

Outras obras do gênero Suspense

Outras obras do gênero Terror ou Horror