Você conhece a alma de uma pessoa pelo modo como ela quebra um ovo. Não é algo que possa ser explicado logicamente. Mas K. — esse cara que divide apartamento comigo — quebra um ovo como quem quer quebrar-se junto e não consegue.
— Quer cebola nos ovos?
— Quero.
E K. põe cebola nos ovos e diz:
— Sabe, essa vacinação contra a febre amarela.
— Que é que tem?
— Não vou me vacinar. Quer dizer, odeio filas. E agulhas. E hospitais, sobretudo. E não entendo uma coisa: como é que o ser humano, esse bicho racional que é capaz de destruir o mundo, é incapaz de sobreviver a um vírus fodido e quase invisível?
— Não sei, cara. As coisas são como são. O problema da raça humana é se achar superior só porque tem um cérebro complexo.
Os ovos ficaram prontos. Estavam ótimos. Jesus, não tenho me alimentado bem. Nem como mais carne. O que eles vendem não é carne: é uma gororoba hormonal podre e fedida.
Eram duas e meia da tarde. K. terminou de comer e disse que iria voltar a dormir. Eu fiquei sentado ali, pensando no que diabos eu faria da minha vida. Eu seguia escrevendo coisas e coisas. Na maior parte do tempo, nada do que escrevia fazia sentido. Mas também a vida não fazia sentido, então por que se preocupar? O essencial é que, de algum modo, escrever é uma forma de gozar e de dançar consigo mesmo.
Fiquei trinta minutos sentado, ouvindo o tiquetaquear do relógio da cozinha. Lá fora só o que havia era buzinas de carros, trânsito, pessoas atarefadas, perdidas, em busca de dinheiro, de alguma aventura, com ou sem amor, seguiam todas, de um lado para o outro, incessantemente, fugindo do tédio e de si mesmas, com os olhos vidrados em celulares, notificações, curtidas, comentários, informação, informação, informação, e pouca coisa que preste.
De repente K. voltou, entusiasmado, louco:
— CARA. Tive um sonho lúcido! Puta merda! Deixa eu te falar: eu já vinha tentando há tempos ter um sonho assim. E ACONTECEU! Se liga: eu comecei a flutuar, e me dei conta de que podia ir pra onde quiser, daí eu fui pra casa da minha ex-namorada, jesus, e ela estava transando com um cara e eu disse: ei, ei, quero participar disso. E então rolou um ménage à trois! Mas aí, com o poder da mente, cara, eu comecei a convocar várias mulheres conhecidas, e até alguns amigos, e todos se reuniram no quarto, e foi uma suruba danada, danada, rapaz! Era gozo pra tudo quanto é lado, esperma pra lá e pra cá, uma gemedeira sem fim! E eu olhei pela janela e havia um bando de anjos trepando entre as nuvens, e outros tocando harpas douradas... Mas então as montanhas começaram a explodir e todos nós paramos e olhamos na Tv e vimos uma notícia de que os EUA e a Córeia Do Norte entraram em guerra e na verdade o mundo inteiro estava metido nisso, Ocidente versus Oriente, e eu flutuei até a base de lançamento da NASA e embarquei num ônibus espacial e dei o fora do planeta... Jesus, e quando eu olhei pra trás, a Terra já tava toda esfumaçada e caótica e destruída... E havia uma mulher sentada ao meu lado, não lembro de seu nome, mas nós nos casamos numa caverna em Marte e começamos a colonizar o lugar e ela me traiu com uma espécie de extraterrestre que tinha um pênis enorme que dava voltas em seu corpo azul. E aí eu acordei.
— Wow. Sensacional, cara.
— Não, é?
E K. se sentou ao meu lado. Ainda ficou rindo entusiasmado por alguns minutos. Depois, pouco a pouco, foi voltando ao estado normal. A realidade foi temperando a sua alma com a monotonia de costume. Olhei pra ele. Estava já com a sua expressão melancólia russa e fria. Ficamos em silêncio por horas e horas.
K. é um cara legal.