Cidade pequena, onde o tempo anda mais devagar, até o ar parece lento, as lembranças permanecem e se perpetuam como lendas, contadas de pai para filho. Ninguém afiançaria com certeza os limites da ficção e da realidade, e na narrativa, ao alvitre de cada qual, acrescenta-se um ponto. Fato é que parece, dada a vivacidade dos contadores, que todos a presenciaram, embora não assumidamente, afinal foi um escândalo, onde a pormenorização dos detalhes mantém vivo o acontecido, como notícia fresca nos jornais. Parece que não há, entre os moradores, sejam idosos ou jovens, quem desconheça o acontecido. Basta uma sugestão no ar para alguém se aventurar a narrar, os olhos iluminados de prazer estimulando a imaginação. O gosto pela “fofoca” assiste a homens e mulheres, indistintamente. No decorrer dos tempos as personagens que ilustraram o sucedido parecem ter virado entes fictícios, talvez, em alguns casos, por serem pessoas reais, de carne e osso, ou envolvendo descendentes, como se tratam de fatos desairosos à moral e aos bons costumes, aparecem como generalizações sem citar nomes, como num respeitoso pacto de silêncio. A esbórnia deu-se entre gente graduada, filhos de ricos comerciantes, fazendeiros de café e de algodão, com poderes na política local, patrões da raia miúda, onde se disseminam os boatos, porém todos cautelosos para não se exporem. Com o passar dos anos, mantida a cautela, e ocultando-se preventivamente a nominação dos participantes, parecia anedota pública, sem maiores implicações. O exemplo do padre Antero era bem a medida das conseqüências na memória dos incautos, e a assustar aos linguarudos. A paróquia da cidade estava sob a responsabilidade dele, conhecido como destemido, ousado defensor dos preceitos religiosos, e sem papas na língua. Exprobrou indignado em comentários acusatórios do púlpito em missa dominical, parecendo juiz no dia do juízo final. Em reprimenda foi remanejado para um distrito distante, militando sua fé em uma pequena capela, aposentando-se no ostracismo. Para tanto bastou um pedido de alguma "autoridade" ao prelado superior, coisas da política.
Há tempos existiu, nos arredores de uma cidade próxima, como uma área delimitada e independente, um conjunto de casas, uma espécie dos chamados bordéis, também conhecidos como casas de tolerância para os mais antigos, com amplo salão de festa e moradias das personagens femininas que animavam aquelas noites mundanas e proibidas. Contudo, apesar das recomendações dos moralistas, as sessões eram concorridas e freqüentadas pela população masculina, em buscas de inconfessáveis entretenimentos. Não raro pipocavam alardes de que fulano ou sicrano, anestesiados pelo álcool, foram procurados por suas dignas esposas a recambiá-los aos seus lares, a coisa corria à boca miúda, modo hipócrita e usual de se enlamear a honra alheia.
Tudo teria início na proposta temerária ( e por isso mesmo aceita) de um casal em reunir todos os amigos em uma comemoração, momento em que anunciariam, extra oficialmente, o noivado, e os convidados ficariam à vontade, ambientada a recepção no salão de festas daquele local, inescrutável e tão comentado, e que fomentava a inquietação e curiosidades, principalmente das filhas de família que jamais freqüentaram aquela “zona” proibida. Seria um desafio a todos eles, a possibilidade de quebrarem a barreira dos preconceitos, adrenalina própria daquele grupo entusiasmado e leviano, à cata de aventuras. O par dos anfitriões desafiantes manifestavam o desejo de transgredir as normas da pacata cidade, demonstrando arroubos modernos, contra a caretice reinante, novos conceitos adquiridos na metrópole onde estudavam. Tratavam-se de estudantes de berços abastados, em período de férias escolares, oriundos de grandes centros, afoitos de contarem as novidades, e entediados com a monotonia que os esperavam naquele período de visitas aos parentes. Cerca de 50 casais teriam aceito o convite. Aprontariam a desbundada geral sem terem testemunhas, jamais pessoas das famílias e do povaréu deveriam tomar ciência da mirabolante façanha. O baile seria à fantasia, todos mascarados. Os casais, apesar de moderninhos, pretendiam se consorciar futuramente nas pompas e na tradição de casamentos religiosos com direitos à pureza do branco e as flores de laranjeiras adornando os cabelos femininos e os buquês floridos.
Ultimadas as providências, acertados os detalhes financeiros com a empresária cafetina, contrataram as prostitutas, apimentando o evento e mantendo o clima de sensualidade do prostíbulo, desde que também elas estivessem sob máscaras. Tinham a ilusão de que conseguiriam manter tudo sob o mais absoluto sigilo.
Iniciada a farra, no levantar dos copos, animados na festividade de sonoras e provocantes canções, não tardou para todos se misturarem, na alacridade dos efeitos alcoólicos e na permissão dos anseios libertos das conveniências sociais. Todos pareciam ser de todos, livres, leves, soltos. Buscavam os quartos contíguos, como lebres soltas entre diversas entradas, comuns nos parques de diversões infantis. Era um entra e sai, onde a malícia e os devaneios dos narradores inoculam os mais sutis venenos. Segundo as viperinas línguas, em altas horas, ninguém era de ninguém, arlequins com colombinas, arlequins com pierrôs, colombinas com odaliscas, além da orgia coletiva da troca de casais e surubas. Teriam afirmado, com convicção, embora não se saiba de onde vinha tanta certeza, de que as meretrizes espantaram-se com as castas visitantes, tal as demonstrações de lascívias e sensualidades, em sexos explícitos e escancarados. A noitada ia avançada, todo o fervor da pujança juvenil alimentando os ânimos dos convivas, inebriados na festança libertina.
De tanto entra e sai de cada quarto, muitos encontravam-se semi despidos, de cuecas e calcinhas, dorsos nus e seios expostos, em gargalhadas de puros deleites, crianças crescidas, anarquizadas aprontando bagunças, longe dos olhos severos de qualquer limite moral.
Ocorre que naquele tempo a luz elétrica era precária, dependia de gerador de energia, e justo naquele momento, já altas horas, deu-se o inusitado de um curto circuito. Na penumbra os presentes, alegres e despreocupados, sem darem pelo princípio de incêndio em uma das cortinas, enfumaçando, aos poucos, e tornando irrespirável o ambiente. Atoleimados pelas dosagens, corriam por todos os lados, tropeçando uns nos outros, buscando saídas, mesmo no estado de nudez apresentados.
Alaridos confusos, surtidos ao léu, pânicos difusos, alcoolizados penitentes, batendo-se à esmo, em zorras e arruaças. No pânico disseminado, sem controles sobre si mesmos, esqueceram de qualquer prudência, sem disfarces, sem a discrição das fantasias, de cara limpa e corpos nus. Atropelados pelo imprevisto, sacudidos pelo instinto de sobrevivência no cada um por si do baile dos afogados, dispersavam-se aturdidos. Exalando hálitos saturados, olhos esbugalhados como a não entender o que acontecia, donzelas recatadas expondo suas partes íntimas, aos berros e lágrimas, confundidas ainda com esgares confusos, lembrando risadas histéricas e nervosas. Deixavam todo o pudor para salvarem-se das avantajadas chamas a lamber o salão, em grande fogueira. Desmaios e vertigens, pálidos rostos, flagradas as virgens, atônitas, surpreendidas, em pelos denunciadas. Roupas extraviadas, cuecas, calcinhas e sutiãs no fogaréu, em fugas indistintas, clamando aos céus em afoitas debandadas.
Impossível manter o incêndio como secreto, as labaredas avolumavam e ameaçavam as casas das “damas” ao derredor, atraindo pequena multidão solidária a prestar socorro, diante da inexistência de um corpo de bombeiro em pequenas localidades. Inadvertidos com a tragédia, roupas esquecidas, pareciam um grupo atônito, sem terem uma real consciência de seus atos tresloucados. Gargalhadas gerais do povo, o bordel em escarcéu. Pilhados nos jornais das redondezas, a notícia em outras versões, fotos resgatadas das redações, regiamente remunerados editores e fotógrafos.
A moral da elite seria preservada do escândalo, sem registros e fotografias.
Das línguas vulgares, todavia, não escapavam, contadas e reinventadas a cada momento...