O magistrado é anunciado pelo meirinho e adentra a sala de julgamentos do fórum criminal. Feitas as observações de praxe, iniciada a sessão, processo passa a ser lido, maçante, exaustivo, extenso, evidências de cansaço na assistência. Dia quente, auditório cheio de visitantes.
No banco o réu, cabelos cortados rentes, camisa branca fechada, olhos baixos, fugidios. Homicida da cônjuge detido em flagrante, não reagira à ordem de prisão. Não se evadira do local, a casa do casal. Consta que fora encontrado em estado de choque, não oferecendo resistências. A morta, atingida na cabeça por um cinzeiro de cristal, apesar de pequeno, o objeto era pesado, atingindo-a frontalmente. Morrera após os primeiros socorros, à caminho do hospital, com traumatismo craniano profundo.
No júri 7 nomes do povo, selecionados dentre 21 pessoas da sociedade, olhos pregados, atentos, representando a expressão popular.
Sentimentos difusos na platéia, parentela da vítima desejando a condenação do réu, achando-o merecedor da pena máxima. Familiares do assassino rezando pela absolvição. Os presentes, curiosos e estudantes de direito, aguardando o desfecho, indiferentes ao resultado, ali se achavam por razões diversas, a simples curiosidade ou aprendizado.
Imponente, cônscio de si, o promotor acusa, reiterando passagens do processo, reavivando cenas, gesticulando acusatoriamente para o réu, encenando dramaticamente visando o plenário, o conselho de sentença.
Na contenda, o advogado convicto na defesa de seu cliente, trazendo os fatos abonadores da conduta do ora condenado, relembrando ocorrências de sua vida pregressa, desconstruindo a imagem de intolerante e frio , enaltecendo seus valores anteriores às circunstâncias do fatídico acontecimento.
Testemunhas em depoimentos de lado a lado, enriqueciam de detalhes o enredo, ora favorecendo a vítima, ora atenuando o assassino, inquiridas pela acusação e pela defesa.
Eloqüência inflamada, gestual de atores dramáticos, em suas togas negras, incendiando a atenção da platéia, gerando um espetáculo, onde culminam as divergências, ressuscitando detalhes das intimidades dos envolvidos, trazendo a público a história entre quatro paredes daquelas vidas sob os holofotes dos argumentos lancinantes, persuasivos.
Debates acirrados, réplicas e tréplicas, encenações pujantes, promotoria e defesa em duelo aberto nas palavras buscando o convencimento de suas teses, um acusa, outro defende. Encenações de verdadeiros artistas dos discursos, convincentes, bem articulados, de efeitos visuais e sonoros, deixando perplexa a assistência.
Dramáticas cenas reacendidas aos presentes, expostos a nu os envolvidos. Ao público, em cores acentuadas pelas expressões daqueles homens, desnudando e expondo as vísceras da intimidade daquele casal. O esposo, um homem insensível, para quem a convivência com aquela mulher tornou-se um enfado, e que a estava levando ao desespero na rotina do casal. Queria vencê-la pelo cansaço até que concordasse com o divórcio, a privava até da relação íntima, embora dormissem no mesmo leito, mal se aturavam. Relação esgarçada, corroídos pela convivência de seres que perderam-se nos emaranhados de uma rotina que os fizeram estranhos coabitando o mesmo teto.
Detalhes trazidos à baila, graças a uma confidente da vitima, amiga íntima. Testemunha portadora das informações mais reservadas da assassinada. O objeto da cobiça era a posse da propriedade, uma casa de classe média. Ambos só tinham aquele teto, cuja separação obrigaria a um deles a buscar nova morada, pagando aluguel. Possivelmente, o então assassino não pensava em um acordo, com a venda do imóvel e a repartição por igual da importância auferida, reclamava ser unicamente dele, pois ela nunca teve renda própria, carregava nos tons o promotor púbico.
Apartes veementes da defesa, - Meritíssimo,"possívelmente” é uma hipótese, não uma prova, estamos diante de uma indução por presunção de raciocínio !!! – Reclamava, aos brados, o defensor, tendo sua reivindicação consentida pelo magistrado, ao acatar as alegações de não constar provas das afirmações de que seu cliente recusara qualquer acordo sobre a venda do imóvel, por inexistente aos autos, colocadas como verdade, pedindo aos jurados que desconsiderassem tal assertiva por leviana, irreal, falsa, meros arroubos de oratória.
A falecida ressurge como heroína, na retórica da acusação. Pessoa digna, honesta, acima de qualquer crítica, comportamento exemplar. Mulher recatada, boa dona de casa, religiosa. Quanto ao acusado, um libertino, de vida torta, descumpridor de seus deveres, dado às atitudes de visível deslealdade conjugal. Obrigava a esposa a trabalhos extras, além das atividades domésticas, confeitando bolos e doces, para suprir as despesas mais comezinhas. Assim seguia a peroração da promotoria, fazendo suspense na galeria dos presentes, aumentando em minúcias o quadro desfavorável ao acusado. Arrematando a argumentação pedindo a pena máxima, agravada por motivo torpe, e por ser a atingida pessoa de estatura frágil, enfrentando um ataque masculino, portanto em desigualdade de condições de defesa.
Revivida a morta, aviltada, na eloqüência da defesa, gerando desconfortos aos familiares que assistiam os debates, desejando demonstrar e convencer que o marido, o assassino, tinha atenuantes e que a vítima não era exatamente a figura pacata, mas pessoa de difícil trato, sofria de ciúmes doentios e atormentava a vida do esposo, homem honesto, cumpridor de suas obrigações, trabalhador de muitos anos na mesma empresa. Ela, portanto, com a convivência doentia, levou-o àquela situação trágica, de autodefesa, sim, pois ele antes foi agredido com aquele objeto pontiagudo, portado por ela, que sobre ele teria se jogado visando feri-lo, momento em que, por instinto natural de defesa, de maneira acidental, teria revidado, embora não tendo a intenção de atingi-la, por amá-la acima de tudo.
“Senhores e senhoras do júri, este drama trazido nestes autos, quanto de verdade nos traz ? Quão difícil, por vezes, torna-se uma relação a dois,onde alguém, chegando do seu trabalho de muitos anos, diuturnamente, é recebido em seu lar, no recesso do que deveria ser o abrigo contra as intempéries externas, mas, repito, convive com a esposa em constante mau humor, amarga, ferina nas colocações, sempre acusando o marido, tornando sua existência um martírio... Reflitam em suas consciências, quantas moradas abrigam dramas semelhantes ? Quantos de nós resistiriam a esse desafio diário, a esse verdadeiro suplício ? Embora casados há mais de dez anos, jamais tiveram a benção de povoar o lar com filhos, dado a problemas de saúde da esposa. Assim vivia seus dias, agüentando os ciúmes por imaginárias aventuras extraconjugais assacadas por ela, em brados, testemunhados por vizinhos. Cotidiano de uma vida que se surpreende no extremo ao ser agredido, além, muito além das palavras fortes que suportava todos os dias, mas por um objeto que poderia ter ceifado sua vida... Este homem, falava dirigindo-se ao réu, merece ser condenado, como se fosse um assassino frio, calculista, que pretendia obter o resultado da morte da companheira ? O que fez, evadiu-se da cena do crime ? Não, pelo contrário, chamou o resgate médico e denunciou-se à polícia, aguardou por ela. Agiu por reflexo, por legítima defesa, jamais pretendia a consumação do fato que o traz hoje na condição de réu neste processo... Nunca se defendeu das acusações injuriosas levantadas por uma mente adoecida pelo ciúmes, jamais a agrediu antes, como não o fez , até se defender da agressão que poderia levá-lo à morte... Este homem, trabalhador, probo, é antes vítima das circunstâncias que autor premeditado de um crime, deve ser inocentado, pois, reitero, apenas se defendeu de um ataque que poderia lhe ter sido fatal...
Encerrava seu discurso, aparentando estar emocionado, pousando sua mão sobre a do acusado.
Sofismas onde os papéis se invertem, a vítima é a culpada, e o réu, a real vítima.
Na persuasão do corpo de jurados dirigiam-se as atenções dos litigantes, cada qual fazendo valer seus argumentos, àquele grupo único caberia o veredicto da sentença.
Impassível, no banco, aguardava o réu a decisão de seu destino...