Inquisição
Luiza Pestana
Tipo: Conto ou Crônica
Postado: 01/04/17 23:05
Editado: 01/04/17 23:06
Gênero(s): Crítica Reflexivo
Avaliação: 10
Tempo de Leitura: 2min
Apreciadores: 6
Comentários: 4
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Palavras: 347
Não recomendado para menores de catorze anos
Capítulo Único Inquisição

Chove e estou exposta.

Estou nua.

Pessoas se aglomeravam como abelhas à minha volta, ferroando-me com seus olhos raivosos. Sentia suas picadas na pele, mais pontiagudas do que as lanças que apontavam em minha direção. Lanças podres e já usadas que carregavam as manchas dos sonhos mortos das pessoas que ascenderam antes de mim.

Eles nunca trocavam. Eram sempre as mesmas armas.

As faces também eram iguais: o mesmo semblante morto. Não havia rugas ou defeitos, mas também não havia vida. As vestimentas também eram as mesmas: A opinião imutável e o conceito fechado que os encobria da cabeça aos pés com seu manto negro. Os olhos ficavam à vista, pois era preciso. Não havia outra forma de julgar sem ser usando-os.

Eram Decaídos.

Eu sentia o peso desse olhar curvar-me as costas.

Sentia a expressão raivosa agredir-me a face.

Sentia a lança velha espetar-me os sonhos.

Mas era tão bom sentir a chuva.

Caía como tiros vindos do céu, mas não me perfuravam. Irrigava meus cabelos e seus pingos frios escorriam-me pelo rosto. Acariciava a pele exposta e recém descobridora da liberdade. Passava como dedos esqueléticos de gelo por todo meu corpo.

Regava-me os sonhos.

Não dava para sentir isso debaixo daquela roupa.

Por isso eu era a bruxa prestes a cair na fogueira agonizante do julgamento. A fogueira que queima primeiro por dentro, matando quem somos com seu fogo dilacerante da crítica. Por isso eu era a feiticeira que depois afogariam no lago da exigência. Lago esse que distorce a imagem do que somos.

Pois criei rugas no rosto imaculado. Mostrei meus defeitos. Transformei-me – conheci-me – no diferente. Exibi minha imperfeição: quem sou. Deixei-me ser lavada pela chuva de lágrimas sonhadoras que ressuscitava, em mim, inspirações.

Tirei a manta. Larguei minha arma. Tornei-me nua.

E sonhei.

Mas puxaram a corda.

A massa de mantos negros se tornou uma só. Não consegui mais sentir a chuva e nem sabia mais se estavam me encarando com seus olhos agressores. Apenas senti a corda me apertar o pescoço, rápida como o bote de uma serpente.

E num segundo, decaí.

❖❖❖
Notas de Rodapé

Espero que gostem o7

Apreciadores (6)
Comentários (4)
Postado 10/04/17 08:32

Essa é a merda da democracia. Se a maioria quer, tu, a minoria, tem que acatar. Mas no mais, concordo com o texto. Sempre é bom fazer o que se quer e todos deveriam fazê-lo

Postado 21/04/17 14:13

Mesmo que por apenas um segundo, é sempre bom poder se sentir livre. Gosto bastante desse texto.

Postado 01/05/17 14:38

Que belo texto é este. Há uma crítica forte aqui também, o que adorei de imediato. Sem contar que não esperava ter um texto com base na inquisição. Interessante, de fato.

A narrativa também foi muito bem escrita, de um modo que podemos sentir perfeitamente como a nossa protagonista se sente. A sua ascensão, no caso, a liberdade sentida em poucos momentos antes de seu declínio, de sua morte. A liberdade de mostrar quem realmente é, o alívio de não mais se esconder, todavia, que tem como consequência (principalmente nessa época) a própria morte. Por difamar aquilo que a maioria acredita.

Por ser diferente daquilo que muitos julgam errado.

Muito bom! Eu simplesmente adorei seu texto.

Postado 15/10/22 15:56

Meu Deus, isso foi muito pesado...

Mas compreendo a situação que o texto quis representar...