OBLÍQUO OLHAR *
Seriam momentos comuns nos passos de sua vida, sem novidades. Um andar cabisbaixo, compenetrado em si, aparentando alheamento, distância. Naquela manhã, como em tantas outras, no seu imperturbável percurso, tranqüilo, fechado em copas, absorto em seu universo pessoal.
No ar, perfumando os ares, suave aroma emanado de uma moça, a passar rente a ele, marcando sua presença com aqueles eflúvios aromáticos. Seguia à frente, com o vento brando sua presença permanecia no ar, fazendo-o aspirar profundamente, como querendo retê-la no olfato.
Traiu-se com seu oblíquo olhar, como disfarçando seu interesse e curiosidade, da fonte a emanar aquela brisa seus olhos se detiveram naquela garota bela, jovial, com um sorriso perfeito e envolvente. Seus olhos, por instantes, se encontraram, mas, maldita timidez, fora vencido, abaixando-os e seguindo seu conhecido caminho.
Durante todo o dia as imagens daquela visão o visitava, tirando-lhe a atenção no trabalho. Desejava revê-la, aspirar sua fragrância suave e persistente, sua beleza juvenil e sedutora. Apenas isso, pois se acabrunhava diante à possibilidade de abordá-la, não saberia como agir, tolhido pelo embaraço.
Cruzaram-se, fortuitamente, em outros momentos, e sempre seus olhos a perseguiam, respirando profundamente o aroma agridoce exalado, como se tivesse uma flor exótica às mãos. Tão próximos e distantes, na barreira invisível daquela timidez que lhe entorpecia as intenções, como um menino acanhado.
Absorto na leitura de um livro, no coletivo que o levaria à cidade, sentiu no ar a presença feminina tão desejada, seria ela ? Levantou sorrateiramente os olhos, traindo a sisudez naquele semblante, pousou seu interesse nos seios tesos de vida e juventude daquela fêmea próxima, conhecida e perfumada. Por instantes, nu os pensamentos ágeis e expostos, ruborizando as faces, envergonhado e atraiçoado, surpreendido. Novamente vencido, abaixou os olhos, afastando-se no receio de viver a sua paixão.
O que o impedia de se revelar a ela, ao menos para uma conversa inicial ? Invisível aos olhos, os cárceres íntimos, presentes nos atos, limites impostos em hábitos, costumes e condicionamentos. Amarras imperceptíveis, algemas a deter em estreitos e medíocres atos, asas atrofiadas, impedidas de voar.
Tanto havia a dizer a ela, sua mente prolixa em contraste com os lábios cerrados, na mudez inexplicável, em visões limítrofes a outros horizontes, restritas e contritas. Prisão imaginada, denunciados nos passos comedidos, introspectivos, talvez em conceitos e julgamentos tolos, numa imagem deteriorada de si mesmo. Incapaz de se sobrepor aos anseios, extenuado e vencido nas tentativas.
Se ela soubesse, naquela figura retraída, ele era um lobo à espreita de sua gazela, o seu interior é impudico, desprezando rótulos e modos, é insano e atrevido. Sim, a desejava como ninguém aquele corpo macio e cheiroso.
Tudo aquilo era apenas um discurso, intramuros, sem ecos, nunca verbalizado, uma justificativa para si mesmo, atordoado pela falta de iniciativa, amortecida por receios de se mostrar, se apresentar como queria.
Sabia o que desejava mas não se atrevia a dizer, a expor o vulcão em erupção prestes a eclodir em suas lavas incandescentes, sedento na fúria do desejo. Escreveria, nisso era bom, com as palavras entendia-se bem, restava o prurido de se confessar tão retraído, com tantos anseios contidos, demonstrados em versos sofridos... Como lhe falar de seu amor, se requisitava beijos, não dos da face, numa suposta amizade de vizinhos, e sim os da boca, ardentes, impunes, insinuantes e vorazes ?.
Não conseguiria manter a sua respeitável cortesia, felino travestido de cordeiro, na gana da sensação de rasgar as roupas, a desnudando, à mostra os tesos seios como preliminares de suas inconfessáveis tentações. Propostas indecorosas, plenos desvarios em acesos instintos, a dor reprimida, na sofrida postura de polido e cordato, quando o desejo era pela possessão e o gozo. Sorria consigo mesmo na confissão íntima de suas reais intenções, não imaginadas na figura pacata e quase apagada ostentada. Um voraz animal acuado na jaula das conveniências.
A olhava enviesado, não querendo encará-la diretamente. Seus olhos descerravam, encerravam seus mistérios, leitura muda, enigmática, sentidos insinuados, velados. Alegrias e mágoas, sorrisos e lágrimas, um pouco de si desvendado na linguagem sem sons, em sutis olhares. Depositava no semblante apelos da alma necessitava de socorros, emocionado.
Para ele a musa vinha como um risco, um raio lampejo em forma de sedução. Chegou inusitada, inesperada, desesperada, etérea como o perfume evolado à sua passagem. Despertava nele sensações não antes experimentadas, porém faziam-no sofrer, rompendo seu silêncio e expondo-se, vendo-se por dentro, refletindo sobre si mesmo, abrindo frestas nas trevas indecifráveis de sua individualidade. Como se apresentasse num reflexo, conhecendo-se, assustando-se com o que via e sentia.
Ela viera como uma intrusa, o invadira na sutileza de um perfume, na calçada feito passarela, como um meteoro fora de órbita, apossando de sua alma, de forma arrasadora, conquistando espaços onde existia apenas ele. E o encontrava desprevenido, indisponível para alguém, em briga íntima, iluminando sua escuridão pessoal. Já era o centro de sua atenção, cedendo, permitindo-se, obediente e prazeroso, aparecendo dançando desconexa, estranha, bailando nos sonhos em sentimentos confusos.
Ignorava gostar, até desdenhava dos que afirmavam amar, tido como fantasia, melindres dos fracos. Mas via-se desconhecendo, revirado em seus conceitos e certezas, sentindo a ausência dela, saudades, querências...
Não queria assumir os sintomas, as emoções, bem e mal lhe faziam, reviravoltas , algo perigoso, ousado, o novo trazendo desafios e descobertas, o pondo desnudo.
Experimentava do bem que o gostar apraz, das dores que o amar traz. O ônibus chegava ao seu destino, a despedida muda, ardendo em chamas intestinas, sofrendo secretos martírios, pela amada que sequer suspeitava de suas intenções...