O crucifixo prateado podia ser avistado de longe no pescoço da senhora Alice. Mulher desprezível aquela! Já chegou a querer “purificar meus pecados” diversas vezes, mas nunca nem se quer pensou em fazer algo do tipo com a filha puta, de trinta anos, que viva sob o mesmo teto que ela.
Um dia desses eu estava andando de mãos dadas com meu namorado e ela começou a gritar pela rua para que nos afastássemos dela e ainda falou algo sobre demônios, caminho da perdição e tentações. Até hoje não sei o que aquela criatura “divina” tinha contra mim. Certo, não sou uma pessoa religiosa... Na verdade, não possuo religião alguma, mas ainda assim acho que ela exagerava muito quando o assunto era eu.
Allan quase morreu do coração uma vez, por culpa dela. Ele estava saindo lá de casa quando ela apareceu, com um terço nas mãos, dizendo que não era tarde para ele, que a salvação ainda poderia ser alcançada e que ele deveria abandonar as tentações do mundo (eu) e se voltar para o céu. Sério, tenho certeza de que não sou a única pessoa por aqui a achar que ela deveria ter sido internada em algum hospício bem longe há muito tempo.
Lilly, a filha mais nova da vizinha, chegou a apanhar da mãe por causa dos fuxicos da velha Alice. A menina saiu escondida uma vez, para uma festa na rua de cima,com o novo namorado, e a mãe nem saberia de nada se não fosse por ela. Quer dizer, qual o pecado que a menina – maior de idade – cometeu? Se divertir havia virado uma coisa terrível e abominável e por isso Lilly não iria mais para o céu?
Para começo de conversa, esse lance de ir ou não para o céu é meio relativo. Me recuso a acreditar que tenha uma vaga para a “santa” Alice por lá. Essa mulher infernizava a vida de todos. Eu soube que até o pastor da igreja que ela frequentava já tentou expulsar a velha de lá. Vai por mim, essa mulher era doente. Vai ver, o marido a deixou por não aguentar mais toda a “santidade” dela.
Não posso dizer que estou feliz com o que aconteceu e até me sinto um pouco culpado por isso. Allan e eu estávamos nos despedindo, com um beijo, quando ela estava passando na calçada da minha casa. Não que eu ache que temos total culpa, afinal, só estávamos fazendo o que qualquer casal faz. Depois daquilo, a senhora Alice saiu correndo e gritando umas frases que não consegui entender e acabou sendo atropelada pelo ex-marido. Morreu na hora. Ficou meio comprovado que não foi a intenção dele fazer aquilo, mas eu tenho para mim que foi! Acho que ele quis apressar a viajem dela para o “céu”, com a desculpa de que Jesus precisava mais dela lá do que aqui, infernizando a vida de todos.
Depois que ela se foi, a nossa vida ficou bem mais tranquila. Eu e Allan não precisamos mais nos preocupar em nos esconder para evitar cenas extravagantes e desnecessárias. Claro que muita gente não nos vê com bons olhos, mas pelo menos ninguém vai ficar tentando nos exorcizar... Espero eu. Lilly foi morar com o namorado umas casas mais para baixo da minha, mas está sempre visitando a mãe. Até o ex-marido da senhora Alice leva uma vida melhor, ele voltou para dentro de casa e conseguiu colocar juízo na cabeça da filha.
Esse pode até não ser exatamente um final, mas até que é bem feliz.