Era uma vez um utópico e maravilhoso reino chamado Existência, habitado por diversos Aspectos. O lugar mítico possuía desde o início três Monarcas, todavia era costume ser administrado por um eternamente jovial Presente, embora seus irmãos tivessem tanto direito de fazê-lo quanto ele.
No entanto, o sempre ancião e muito poderoso Passado se contentava em vagar pelo reinado, contando histórias, trocando lembranças e ensinando os outros. Às vezes ficava esquecido em algum recanto sombrio, remoendo fatos ou palavras há muito ocorridos. Bons ou ruins, os retinha em sua infinita memória. Era a fonte de informações da Existência.
Apesar do poderio dos outros dois, todos reverenciavam sobretudo o caçula, o imutável infante Futuro. Dificilmente ele era visto e sua natureza caótica era assustadora. Ninguém, nem mesmo os outros Monarcas, sabia quando ou como ele iria chegar e o que traria consigo. Incontrolável por natureza e imprevisível por aptidão , nunca fixou morada ou paradeiro, sendo quem renovava o status quo no reino.
Mas esta história não é sobre os Três.
Havia um casal muito antigo, querido e importante naquelas belas terras: a esposa era a simpática e otimista Esperança e seu paciente companheiro desprovido da visão chamava-se Amor. Eram pais de muitos Aspectos de Existência, além de serem exemplos de conduta e companheirismo. Por isso eram tão estimados e, como os Monarcas, pareciam ser atemporais.
A filha mais velha e bela deles, Felicidade, morava com eles e desde sua gênese visitava a todos os Aspectos pelo simples prazer da convivência. Sua presença só fazia da Existência algo mais que perfeito.
Porém, uma certa noite o Futuro repentinamente caiu dos céus acompanhado de uma tempestade furiosa e exigindo que todos os Aspectos se reunissem na praça central, pois tinha um Anunciamento para fazer. Aquele tipo de evento era tão raro e importante que a ordem era indiscutível, sendo imediatamente obedecida. Em um piscar de olhos, todos estavam no local, a despeito da tormenta que os castigava sem trégua.
— Eu os saúdo, meus súditos. E serei direto com o que tenho para lhes dizer! — bradou Futuro com feições nada gentis ao subir no palanque.
Burburinho. Trovões. Silêncio.
— Um dia, um de Nós vai se tornar o que jamais deveria ter sido, fazendo o que devia ser para sempre chegar ao fim. — a confusão se instaurou nos olhos e mentes dos ouvintes, mas o menino ergeu a mão aberta, exigindo total atenção.
— Na penúria que há de vir, quem era indesejável tornar-se-á familiar e então, um rebento inexplicável há de mudar a Existência de um modo jamais sonhado! — vociferou o infante, elevando sua voz acima do trovejar violento que rugia acima de todos. — Desfrutem, pois, de tudo o que lhes é devido! A era mais negra começa agora!
E após um relâmpago que clareou tudo e todos, o Futuro desapareceu.
Ninguém, nem mesmo os demais Monarcas, compreenderam o teor ou a gravidade daquele monólogo. Ao menos, não naquela noite. Entretanto, sabiam que o que quer que houvesse, era inexorável. Restava tão somente aceitar, esperar e se preparar.
Como, não sabiam.
O tempo passou. Muito, tanto que somente Passado lembrava do que havia sido dito. Foi nessa época que as incômodas cunhadas de Esperança, a Solidão e a Tristeza, vieram ao seu lar para alertar que o irmão franzino, taciturno e eremita de Amor, aquem todos conheciam como Ódio, estava doente. Sempre houvera alguma coisa errada com ele, que acabou sendo banido de Existência para que aquilo que dele emanava não afetasse os demais Aspectos.
Somente as duas às vezes o encontravam na floresta onde o ermitão perambulava e disseram que Ódio estava agindo cada vez mais estranho, mesmo para ele. Normalmente, ignorariam-no. Só que tinham um pressentimento tão ruim que acabaram por ir até o primogênito da família e contando o que se sucedida, em sigilo absoluto.
Tanto Amor quanto Esperança ouviram atentamente, agradecendo regiamente pela atitude louvável e inesperada de ambas. Prometeram que iriam refletir cautelosamente sobre como iriam proceder, embora o primeiro impulso do afável senhor fosse ir de imediato ao encontro do irmão mais novo. As visitantes então foram embora juntas, pois onde uma fosse, a outra estava por perto.
— Vamos regressar para a floresta e tentar encontrar Ódio de novo. — alertou Solidão, antes de fechar a porta atrás de si. — Talvez Tristeza e eu consigamos contornar a situação até vocês decidirem o que seria melhor para ele...
Tristeza, ao recordar do irmão, apenas chorou inconsolável enquanto seguia a parente, pois onde uma fosse, lá estava a outra. Amor ficou parado, olhando a peculiar dupla sumir na noite. Esperança o abraçou ternamente, beijou-o e sussurrou que tudo iria ficar bem.
Pela manhã, uma terrível novidade foi descoberta pelo esposo devotado, que sempre levantava primeiro para cuidar do desjejum: Felicidade não estava em casa. Chamou-a uma, duas, dez vezes. Não obteve nenhuma resposta.
Esperança acordou com os brados do esposo, e logo se uniu a ele na procura e nos chamados. Vendo a ineficácia deles, decidiram ir procurar pelo reino, angariando apoio de qualquer Aspecto que pudesse e quisesse ajudar. Todavia, no meio do trajeto, Amor teve um lampejo.
Talvez um presságio seria o termo mais adequado.
— Querida, por favor reúna o pessoal e vasculhe cada casa! Eu vou até a floresta!
— Amor! Não pode ir lá sozinho! — protestou a sua consorte, agarrando-lhe o braço. — Espere ao menos que...
Amor calou a boca da esposa com um longo beijo e, inconsequente e imprudente como muitas vezes era, saiu em disparada à toda potência, incapaz de ser alcançado naquele momento. Todavia, contra todas as expectativas, Esperança se manteve otimista e retomou seu trajeto: iria contar toda a situação aos demais e, com o auxílio do Presente, resolver aquele impasse.
A região erma de Existência era muito distante de onde os Aspectos costumavam residir. Amor embrenhou na mata fechada e tenebrosa. Ainda que cego de nascença, ele podia sentir a essência das coisas. E o que ele sentia era desagravável ao extremo.
Era como se a vegetação tivesse sido... Flambada.
Amor prosseguiu sua jornada, guiado pelo instinto que sempre o uniu ao restante de sua família. Depois de muito procurar, chamar e andar por entre árvores parcialmente carbonizadas e folhagens chamuscadas, seus clamores finalmente foram respondidos.
— PAI! PAI! SOCORRO! — implorou Felicidade de algum lugar, ainda longe de seu progenitor. — POR FAVOR, ME AJUD... — suas súplicas foram substituídas por um urro animalesco e um grito altíssimo de dor.
— Filha! — chamou Amor várias vezes correndo na direção da cacofonia, sentindo algo que nunca experimentara antes nem saberia o que era.
E foi naquela hora que ele sentiu com uma riqueza de detalhes visceral a presença insólita, poderosa e quase irreconhecível do seu irmão Ódio literalmente destruíndo Felicidade em um milhão de pedaços calcinados bem diante do pai dela, cujo corpo ainda foi atingido por algum daqueles restos mortais.
O outrora raquítico e silencioso Ódio havia se transformado em uma grande e irracional monstruosidade ignea, seu coração e sangue inflamados pela febre que sempre o consumira e agora o faria com tudo ao seu redor. Sua pobre sobrinha, que ouvira toda a conversa e ingenuamente imaginou que sua presença o ajudaria seria apenas a primeira vítima. Mas, aquele era o seu destino e verdadeira forma: agora nada nem ninguém poderia detê-lo.
Exceto o seu irmão mais velho, o Amor.
E ele o enfrentou, mesmo igualmente despedaçado por dentro como Felicidade fora vitimada. Amor lutou contra o agora mais puro Ódio com todas as suas forças durante dias em uma batalha titânica que devastou quase toda a floresta. Os outros Aspectos que logo vieram ao seu auxílo pouco ou nada puderam fazer contra as chamas e o veneno que Ódio liberava. Alguns chegaram a sucumbir durante a luta. Após muito esforço e sacrifício, o Amor triunfou.
Todavia, não houve comemoração alguma, pois além da destruição brutal de Felicidade, o pai dela havia sido contaminado pela mesma febre amaldiçoada do irmão monstruoso. Pressentindo o que viria, Amor só teve tempo de pedir perdão à Esperança por não ter conseguido proteger a filha e, com as últimas forças que lhe restavam, criou uma densa redoma ao redor de si mesmo. Forçou-se a um estado letárgico do qual tencionava nunca mais despertar.
Uma prisão dentro de outra.
— Adeus, Esperança... E me perdoe... — foram as últimas palavras de Amor já com a voz um tanto gutural. — Eu sempre... — seus olhos foram se fechando ao mesmo tempo em que seu corpo se transformava e se incendiava.
E para o pavor de todos, Amor se transformou em uma versão ainda maior e horrenda de Ódio, tão imensa que ficou violentamente espremida dentro de sua prisão, ardendo de forma ameaçadora, contudo adormecida, incapaz de sair do cárcere exceto se desperto e libertado por alguém.
O tempo passou e a desolação que tomou conta de Existência foi homérica. Esperança fixou morada próxima de onde a criatura horrenda em que seu ex-marido se convertera e por muitíssimo tempo o visitara dia e noite. Tristeza e Solidão, sentindo-se responsáveis por tamanha tragédia e igualmente saudosas dos irmãos, sempre a acompanhavam. Ela nunca gostou delas, pois suas presenças tinham um quê negativo tremendo. Só que no fim, as três acabaram convivendo juntas por um vasto período.
Mal os Aspectos sabiam que o quinhão de tudo aquilo ainda seria cobrado e era alto demais.
Depois de incontáveis estações de peregrinações, reflexões e desilusões, a Esperança que todos conheciam foi esmorecendo. Seu sorriso outrora constante foi escasseando, assim como a radiancia de seu olhar. Lembrava da filha destroçada e então observava por horas a fio Amor/Ódio se revolvendo dentro da jaula, começando a crer que aquilo era irreversível. Alguns Aspectos que gerou com ele e participaram da batalha começaram a morrer, ceifados pela doença venenosa e ferimentos mal-curados que a primeira besta-fera lhes afligiu.
Era dor demais para alguém e até mesmo a Esperança tinha limites.
Vieram então as crises catatônicas. Logo após, o definhamento. Por fim, uma série de pequenos inchaços grotescos e pulsantes nas costas, ventre e seios. Mesmo com a crise instaurada em Existência, as irmãs de Amor e Ódio levaram uma combalida e indiferente para o centro do reino, onde Presente lutava para manter o parco controle que ainda tinha sobre as coisas e deu toda a assistência que podia para sua antiga súdita.
Esperança estava inacreditavelmente morrendo. Era visitada quase todos os dias e por diversos Aspectos, muitos deles seus filhos. Tristeza e Solidão continuaram ao seu lado, cheias de remorso e devotadas a cuidarem dela até o impensável fim. Ninguém descobriu o que ela tinha. Ao menos, não a tempo de salvá-la de sua partida.
E ele finalmente veio em um final-de-tarde garoento e atípico que resfriou todo o território, deixando um clima de mau agouro no ar. Havia muitos Aspectos ao redor de Esperança naquela data quando ela, em um súbito e doloroso momento de lucidez, olhou para o sol poente e exclamou algo baixinho, quase inaudível:
— Mãe...? Como?! — e então cerrou os olhos lacrimosos para nunca mais os abrir de novo.
Grande foi a comoção naquele inacreditável momento por parte dos que estavam ali presentes. No entanto, de modo algum maior do que o borbulhar coletivo e bizarro que se propagou advindo das pústulas de Esperança. Na medida em que elas pipocavam em sangue e pus, dedos finos e albinos terminados em garras escuras feito piche surgiam de seu interior.
Choque. Incredulidade. O mais puro horror.
O corpo de Esperança convulsionou, se deformando e rasgando conforme uma abominação albina, leprosa e vociferante pior do que qualquer pesadelo já tido por alguém se expandia dos retalhos na carne aos esguichos, empesteando o ar com um icor repugnante enquanto expandia-se.
A coisa maldita guinchava e se avolumava em uma velocidade absurda, apanhando e devorando tudo o que tocasse e fosse vivo com suas inúmeras mãos e bocas repletas de presas. Uma centena de vaginas com olhos as rompendo surgiram de modo caótico enquanto uma miríade de narinas catarrentas fungava o ar com tanta força que sangravam, gerando silvos de romper os tímpanos. Muitas orelhas serviam de escamas, captando especialmente as pulsações de cada e de todas as vítimas em potencial a quilômetros dali.
Muitos foram engolidos, destroçados, absorvidos por aquela aberração, que se tornou um monstro de proporções calamitosas, com vestígios da própria mãe espalhados pelo corpanzil. A cabeça rachada de sua progenitora acabou por adornar o centro da testa de seu último e mais hediondo filho, que irrompeu casa afora em uma disparada animalesca e ensandecida, uivando, gritando e vomitando.
Seu apetite por vida e destruição era simplesmente insaciável.
E foi assim que, com a morte de Esperança, aquele que devastaria toda a extensão da Existência e a quem viriam chamar de Desespero nasceu.
O que ocorreria a seguir? Somente o Futuro poderia dizer...