Cabelos escuros como a noite, olhos de um azul que mais parecia um par de safiras brilhantes, rosto branco de porcelana, com a falsa pele abaixo dos olhos decorada com um pequenino desenho em forma de gota, deixando o olho direito destacado pelas “lágrimas” de tinta.
Seus traços eram tão únicos, tal qual sua roupinha de estilo vitoriano, com o casaco nobre decorado com os babados franceses, e os sapatinhos muito bem presos a seu pé de porcelanato branco.
Alice estava apaixonada por aquele boneco de porcelana que via na vitrine de uma antiga loja, uma loja que ela nem se lembrava de estar naquela esquina afastada por tanto tempo. A construção de madeira, com janelas arranhadas e decoração rústica era aconchegante, e a imensidão de bonecas que havia nas prateleiras amadeiradas era algo a se notar.
Centenas de bonecas eram expostas, bonequinhas de todos os tipos, gostos, rostos e épocas. Porém, para Alice, nenhuma chamou mais atenção do que aquele boneco de aproximados trinta centímetros, com suas roupinhas cheias de gracejos e beleza.
- Vamos embora logo, Alice, pelo amor de Deus! – pediu Karen, a amiga que lhe acompanhava, olhando para os lados, parecendo assustada com todos aqueles olhos de contas coloridas, que realmente pareciam segui-las pela loja.
Mas a mulher ruiva, Alice, estava ocupada demais ajeitando os cabelos compridos do boneco a sua frente, sorrindo de maneira calorosa, deslizando os dedos, delicadamente, pela face branquinha do pequeno brinquedo.
- Pare de ser chata, Karen! – pediu a mais baixa, ainda com o boneco da mão. – Eu queria vir sozinha, mas você decidiu que seria uma ótima ideia vir comigo! Então, por favor, se controle! – e ela voltou os olhos verdes para o boneco, sorrindo. – Ele não é lindo? Eu adorei, acho que vou leva-lo.
- Sim, muito bonitinho, até criar vida, pegar uma das suas facas da cozinha e te matar! – A loira olhava de maneira cautelosa para o dito cujo boneco, como se o desafiasse à se levantar como ela havia dito.
- Você anda assistindo muitos filmes estranhos, menina, para com isso. – Alice olhou ao redor, procurando por algum atendente, porém, tudo que encontrou foram mais fileiras intermináveis de estantes, com incontáveis bonecas.
Dessa forma, ela simplesmente se dirigiu para o balcão ao lado da porta, surpreendendo-se ao ver que um velho senhor ali estava, olhando-as de maneira gentil, como se as conhecesse há muitos anos.
- Boa tarde, jovens senhoritas, vejo que se interessaram por um de meus pequenos tesouros! – o velho era grisalho, com rosto cheio de rugas, que quase escondiam os olhos azuis cintilantes, já meio opacos pela velhice.
Era baixo, metido em um terninho xadrez, com gravata borboleta, na cor vermelha, e os poucos cabelos penteados para trás, enquanto os olhos, sim os mesmo que quase se escondiam de trás das rugas, eram encobertos por óculos de armação grossa, e lente mais grossa ainda. O idoso lhes lançava um sorriso desdentado, mas mesmo assim muito amável, enquanto as mãos cheias de pintas se ocupavam em passar a flanela sobre a madeira negra do balcão, polindo-o calmamente.
- Oh, sim, espero que não me ache intrometida! – comentou Alice, depositando o boneco sobre o balcão, com todo o cuidado do mundo. –Adorei este, gostaria de saber o preço.
- Então nosso Conde ainda faz sucesso! – brincou o velho, pegando o brinquedo nas mãos, levando-o para perto do rosto, para ajeitar os fios negros que compunham o cabelo do tal Conde. – Esse aqui é muito especial, por certo!
- Especial? – a ruiva apoiou os braços no móvel alto, mais alto por ela medir um e sessenta de altura, presenteando o velho vendedor com sua expressão curiosa.
- Oh, sim! Este aqui é o Conde Renè de Tolosa, - Explicou o grisalho, colocando o dito cujo sentado, ajeitando a postura do mesmo. – dizem que ele era um Casa Nova da França, muito amado pelas cortesãs, odiado pelos maridos das nobres duquesas e baronesas, e herdeiro de uma grande herança! Era um primo distante de Louis XIV.
- E agora um lindo boneco de porcelana! – brincou Alice, dando uma risada franca, ainda encarando os olhinhos azuis do boneco.
- Contam que Renè tinha uma beleza única, que encantava a todos, além de ser um cavalheiro muito cortês, e exímio mestre na arte das espadas. – o vendedor continuou a explicar. – Ele morreu um pouco antes da Revolução Francesa estourar, mas sua fama perdurou até hoje, pelo que podemos ver. – e fez uma pausa, para poder respirar um pouco. – Esse menino... Não são as primeiras a se encantarem por esses olhinhos azuis! Renè, Renè, anda aprontando muito, menino.
Alice não conseguiu entender se aquela última frase foi uma brincadeira ou se o velhinho falava sério, pois o idoso encarava o boneco com uma expressão repreendedora, quase como um pai que dá uma broca nos filhos, mesmo que não queria fazê-lo.
- Bem, ele me conquistou. – a moça resolveu não pensar mais naquilo, querendo apenas levar o tal Renè para casa. – Gostaria de saber o valor.
- Se ele te chamou tanta atenção posso fazer um preço especial... Cem euros. – finalizou ele, colocando as mãos enrugadas sobre o balcão.
- Por um boneco?! Alice, não seja maluca de... – Karen, que até o momento estava esquecida em um canto qualquer da conversa, reapareceu, para logo ser cortada pela ruiva.
- Feito. – sorriu a compradora, sacando a carteira de sua bolsa simples, retirando seu cartão de crédito. – Passa no débito. – pediu, estendendo a tarjeta de plástico para o idoso. – Senhor...?
- Jean. – respondeu ele, aceitando o cartão da jovem, engatando-o na máquina, digitando o preço, em seguida entregando para que Alice colocasse a senha. – E a loja é a Revê Magique, caso queira voltar mais vezes! –devolvido o cartão junto do comprovante, o senhor Jean teve o cuidado de colocar o “Conde Renè” dentro de uma sacola de papel, deixando-a sobre o balcão, próxima da ruiva, que terminava de guardar a carteira. – Só mais uma coisa, as roupas dele são de um tecido muito resistente, mas, mesmo assim, tem de ter o cuidado de lavar com certa delicadeza.
- Pode deixar, eu já tive outras bonecas, posso cuidar de mais uma! – garantiu ela, pegando a sacola, enganchando-a no braço esquerdo. – Obrigada por ter gastado seu tempo conosco, senhor Jean!
- Imagine, querida menina, eu que lhe agradeço por levar esse lindo Conde para um lugar menos tumultuado! – riu o idoso, para o desespero de Karen, assustada o suficiente com todas as bonecas nas estantes.
Quando saíram da loja rústica, deram de cara com o cruzamento de uma avenida qualquer de Londres, onde ambas as garotas residiam. Karen era nativa de lá, londrina, bem apessoada e, relativamente, boa de vida; já Alice, era mais uma estrangeira que sonhava com uma vida melhor, procurando oportunidades de trabalho em um país desenvolvido, caindo na mentira de que tudo seria bom e perfeito.
A ruiva sentia falta de casa, dos amigos, da família, porém, sua vida em Londres era tudo que tinha por agora. Lutara para comprar sua casa em um bairro seguro, e agora que finalmente havia se estabilizado em um bom emprego como secretária do Presidente de uma Multinacional – agradecimentos a sua faculdade de Linguística, ela não pensava em deixar tudo, mais uma vez, e ter de recomeçar no Brasil, seu país de origem.
Era triste conversar com os pais e amigos apenas pela internet, mas, era um dos muitos sacrifícios que fizera para tentar uma vida melhor.
- Eu vou indo, Lice, me ligue se essa coisa que você comprou começar a agir de maneira estranha! – Karen despediu-se da amiga com um abraço apertado. – Se cuida, tá?
- Você também. – a moça apenas acenou quando a amiga tomou o caminho de volta para casa, enquanto Alice preferiu pegar um taxi para chegar mais rápido a sua casa, um tanto quanto longe daquela parte da cidade, onde a Revê Magique se escondia nas sombras.
O fim de tarde era algo magnífico de ser observado, com seu pôr do sol tingindo o céu, antes azul-acinzentado, de vermelho e laranja, transformando tudo em uma prévia alegria quente, antes de que tudo aquilo findasse em uma noite fria e chuvosa, como a maioria de todas as noites em Londres.
Por enquanto, Alice podia aproveitar a aconchegante sensação de continuidade que aquela magnífica mudança de cores proporcionava, tentando manter-se esperançosa de que o dia seguinte seria melhor do que o atual, e que seu pequeno Conde lhe traria algum sentimento de companhia, em um ambiente doméstico onde havia uma solidão quase frequente, afinal, ela não costumava levar seus breves casos para seu apartamento.
Não... Nenhum deles fora sério o suficiente para conhecer sua casa. Falando na dita cuja, lá estava sua casa, em um bairro calmo, erguendo-se nas cores lilás e branco, ornamentada com jardineiras nas janelas, enquanto a porta da frente tinha um pequeno capacho florido. O jardim verdejante apresentava flores diferenciadas, assim como alguns arbustos distribuídos pela pequena trilha de pedras que levava até a entrada da casa.
Alice pagou ao motorista, deixando o táxi com calma, levando sua bolsa e sua sacola com cuidado, enquanto era observada por alguns vizinhos, divididos em tarefas como limpar a calçada, ou podar as flores de seus próprios jardins. Cumprimentou a Sra. Murray, sua vizinha da esquerda, que usava luvas de borracha na cor amarela, para garantir que não iria se furar com os espinhos de suas rosas vermelhas; e é claro que Alice não pôde ignorar o sr. Fletcher, o rancoroso velhinho da esquerda. Ela não culpava o velho senhor por ser assim... O filho havia morrido há pouco mais de dois meses, deixando-o sozinho, sem ninguém mais naquela casa fria e de decoração caprichada.
Talvez por isso ela aguentasse ir até a casa dele todas as tardes de quinta-feira, preparar um delicioso chá da tarde, e ouvi-lo lamentar sobre como a vida era injusta. Ninguém deveria enterrar seu filho, a dor de perder alguém com laços tão estreitos era lancinante, e se havia coisa pior, o Sr.Fletcher ainda não fora apresentado à ela.
Mas hoje não era Quinta-Feira, Alice não podia ir até ele naquele momento, e o velho não parecia muito disposto à uma conversa amigável. Era melhor assim... Lice queria um tempo para achar o lugar perfeito para sua mais nova aquisição.
Em segundos ela achou a chave dentro de sua bolsa, abriu a porta, e logo estava dentro de casa, respirando o ar parado, abrindo as janelas da sala rapidamente, para deixar ventilar o local. Puxando o ar que vinha de fora, enchendo os pulmões com as golfadas frescas, sentindo-se revigorada ela contemplou o céu.
Suspirou, passando a mão livre pelos cabelos, enquanto jogava a bolsa sobre o sofá, e levava a sacola com o boneco para seu quarto, onde a colocou sobre a cama, sentando-se na mesma, abrindo o pacote com cautela.
Tirou o belíssimo Renè de dentro dela, fitando, pela vigésima vez naquele dia, os olhos de safira, imaginando se o verdadeiro Conde de Tolosa teria olhos tão vivazes e belos. Ajeitou os cabelos negros do objeto em suas mãos, sorrindo fracamente.
- Lily teria gostado de você. – Alice começou a conversa baixinho, como se sussurrasse apenas para que Renè entendesse. – Ela adorava bonecas, mas eu nunca lhe dei nenhuma. – sentiu os olhos encherem de lágrimas, contendo-se para não chorar. – Eu tinha medo... Não sei por que! Depois de um tempo você aprende que não se deve temer os mortos... Já passaram para o outro lado... Mas os vivos estão aí, prontos para fazer mal à quem for. – e finalizou com um sorriso, deslizando seu indicador pela bochecha da boneca. – A última bonequinha que ela me pediu foi uma Mini Maria Antonietta, com a roupa cheia de babadinhos, frufrus e tecido maleável... Uma boneca perfeita... Acho que por isso eu te comprei. Você me fez lembrar dela.
Alice se levantou, seguindo até sua estante de livros, posicionada ao lado da cama de casal, encontrando um espaço para o boneco bem entre os livros, ajeitando-o com certo cuidado, tendo a certeza de que ele não despencaria no meio da noite.
- Espero que goste dessa nova estante. – brincou a ruiva, tirando sua jaqueta, parada a frente do boneco, fitando-o com curiosidade. – Não é grande como a que você tinha lá na Rev-não-sei-das-quantas, mas terá a companhia de mestres! Dostoievski está apoiando você pela esquerda, poucas pessoas tiveram a moral de dizer isso!
E ela se foi, dando as costas à Renè, querendo apenas encontrar seu banheiro e se livrar do cansaço daquele dia terrível. Foi tirando as roupas enquanto caminhava, livrando-se dos sapatos primeiro, depois das calças, a blusa, chegando ao banheiro apenas de lingerie.
Adentrou o cômodo com a cabeça nas nuvens, parando a frente do espelho ao lado da pia, conseguindo ver todo seu corpo naquele grande espelho retangular, reparando as marcar que seu ventre e dorso apresentavam, virando o rosto em seguida, tirando o resto das roupas.
O banheiro era relativamente espaçoso, garantindo uma ducha, uma banheira, e a pia branca, que imitava mármore. Todo decorado em branco, com apenas alguns detalhes em verde, o banheiro era de aparência refrescante, com uma janela rústica ao lado da banheira, donde podia-se ver o jardim de inverno construído depois de muito tempo.
Alice não queria se mudar daquele bairro, por isso gastava uma quantia razoável deixando sua morada o mais aprazível, para si, que conseguisse, dando-se luxos como o jardim de inverno visto da banheira, e que também desbocava na sala de visitas; os muitos livros e a estante de madeira boa; os móveis da sala; o quarto onde guardava as coisas de Lily, tudo muito bem organizado; e, finalmente, sua cozinha, com instrumentos e eletrodomésticos muito bons.
Quadros, esculturas, ou qualquer item de decoração eram comprados de locais mais baratos e de qualidade, e divididos pela casa, dando um ar envelhecido ao ambiente tão moderno. Mas, no presente momento, a ruiva não pensava na complicada decoração de sua casa. Na verdade, ela não pensava em nada.
A água morna chocava-se contra sua pele, causando certos arrepios ao contrastar com a brisa fria que chegava pela abertura do telhado sobre o jardim de inverno, enquanto a mulher apenas continuava com o rosto apoiado nas mãos, largadas juntas por sobre a beirada da banheira, fitando suas plantas verdejantes à frente, perdida em um vazio existencial.
Aquele era um dos momentos onde ela podia se esquecer de tudo pelo que havia passado, tanto no passado quanto naquele momento, e relaxar, apenas isso. Relaxar. Completa e deliciosamente relaxada, Alice deixou sua mente vazia, apenas encostando suas costas à banheira, e deixando a cabeça pender para trás, apoiada na pedra em volta da banheira.