O Outro Velhinho de Vermelho
Como todos sabem, aqui no Brasil já se tornou tradição as crianças carentes de todo o país enviarem aos Correios cartas para o Papai Noel contendo o seus singelos pedidos, que são atendidos por pessoas de boa vontade mediante doações. São um sem-número de desejos modestos e relatos comoventes, mas neste Natal nos chegou uma carta extremamente perturbadora enviada por alguém que se identificou apenas como "Garoto Errado". Este escabroso relato impressiona pelos detalhes no mínimo bizarros, fora o fato de fazer menções ao misterioso caso que ocorreu a cerca de três anos, nesta mesma época em um bairro no subúrbio de São Paulo. Outros fatos semelhantes também sendo investigados em mais sete estados, pelo que fiquei sabendo.
E antes que me digam que o que vou revelar é apenas uma piada de péssimo gosto, percebam que o endereço descrito no envelope é do instituto psiquiátrico localizado a poucos quarteirões de onde tudo aconteceu. Então me escutem com atenção e não me interrompam, por favor.
"Querido Papai Noel
Oi. O senhor deve ter ouvido falar de mim: sou eu, o Garoto Errado. Estou mandando esta carta pra te fazer um pedido diferente das outras crianças, algo que só o senhor pode me dar, não estes outros caras que fingem e enganam todo mundo. Me dar, não: me devolver.
No ano antes do ano retrasado, eu fui um bom menino. Sempre fui, mas naquele ano fui beeeem mais, pois queria muito um video-game. Me comportei direitinho, tirei boas notas, ajudei a mamãe lá em casa e até comprei briga com o coitado do Juquinha quando ele foi bater no Vitinho. Eu apanhei no lugar dele, pro senhor ter ideia de como fui legal.
Naquela maldita noite, eu fiquei acordado esperando o senhor deixar meu presente debaixo da árvore de Natal. Tava frio pra caramba lá na sala e meus pais já tavam dormindo, mas eu tava ansioso demais para ficar deitado no meu quarto. Fiquei escondido atrás do sofá, de olho na janela que eu tinha destrancado pro senhor entrar, já que não temos chaminé e me falaram que o senhor nunca usa a porta.
Quando deu três e meia da manhã, as luzes do pisca-pisca apagaram, me deixando no escuro. Eu comecei a ouvir um monte de cachorros correndo e latindo como se estivessem furiosos do lado de fora da minha casa. No começo tava longe, mas depois foi ficando mais perto e mais alto. Achei aquilo estranho e ruim. Comecei a ficar com medo, mas não conseguia sair de lá detrás do sofá. Logo, aquela barulheira tava no quintal. Meus pais devem ter desmaiado lá em cima, porque disseram depois que não escutaram nada. Como?!
De repente, tudo ficou quieto de novo e a àrvore se acendeu toda de uma vez. Aí começou a piscar bem rápido e muito forte, como se as lâmpadas fossem explodir. A janela foi abrindo devagar e o vento frio fez entrar um cheiro horrível de cachorro molhado misturado com carniça dentro de casa. Tapei meu nariz e fiquei olhando aquela coisa entrando na sala: era careca e magrela que nem o povo que passa fome lá na África, com dedos finos e unhas grandes, sujas e pontudas. O rosto era ossudo e feio, com o nariz pequeno e torto. Os olhos daquilo eram grandes, verdes, com um montão de veias ao redor deles e brilhavam no escuro. Sua pele era muito, muito, muito enrugada mesmo, branca que nem leite e parecia gosmenta feito a de um sapo.
A barba dele passava dos joelhos, toda preta e cheia de restos de comida. Tinha um monte de moscas, baratas e até aqueles vermes que nascem em coisas mortas nela. Seus braços eram muito compridos e finos, passavam dos tornozelos. As pernas eram grandonas e secas também. Ela tava com uma roupa igual a sua, mas as botas eram velhas, imundas e rasgadas e a roupa toda vermelha e molhada... De sangue. Eu já me cortei bem fundo uma vez, eu sei que era sangue! Meu Deus, foi terrível, Papai Noel! Eu comecei a chorar e gritar, mas não conseguia me mexer, tava com medo demais!
Aquele bicho veio bem devagar, puxou o sofá para o lado e ficou parado, me encarando. A nojeira dela era tanta que comecei a vomitar tudo o que tinha comido. Ele se agachou, passou o dedo no vômito, chupou e deu um sorriso enorme. Aí eu vi os dentes iguais de cachorro. Eu me mijei todo. Ele gargalhou alto e sua risada era que nem quando a gente arranha a lousa. Tapei os ouvidos e berrei chamando meus pais. Eu juro, Papai Noel, eu gritei com toda a minha força! Eles disseram que não ouviram! Impossível!
- Você foi um garoto mau, moleque do caralho! - aquele monstro falou desse jeito comigo com aquela voz assustadora de monstro. - E quem é filho da puta que nem você recebe minha visita ao invés daquela bicha idosa, gorda e pedófila!
- Sabe o que crianças malvadas como você ganham? Porra nenhuma! - o bicho ruim continuou a falar, se abaixando e se aproximando mais de mim. - Em vez de dar, eu TIRO de vocês! Primeiro, a inocência. Humm, adoro esta parte... - ela gemeu de um jeito esquisto que me deu ainda mais medo.
- Depois, eu tiro a liberdade! E depois... Bom, meus cães e eu gostamos muito de comer algo... Diferente nesta época do ano, sabe? - a coisa passou sua língua enorme, roxa e com duas pontas sobre os lábios rachados dela e ficou quieta por um tempo. - Eu tenho uma receita nova para testar e você me parece ideal, viadinho chorão do caralho!
Eu não conseguia falar nada, só berrava e berrava, tremendo no chão, todo melado de janta e mijo. Ela ficou com a cara monstruosa dela perto da minha e me iluminou com aqueles olhos verdes que pareciam pegar fogo. Daí ela berrou para eu calar a "porra" da boca e "engolir o choro". Eu obedeci na hora, desesperado e em estado de choque. Ainda sinto o bafo de cachaça com churrasco e cigarro no meu nariz, sabia?
- Agora, seu arrombadinho de merda, eu vou te levar embora. - o monstro sorriu de novo e me agarrou pelo pescoço com aquela mão nojenta e gelada. - Diga adeus para este mundo, Juquinha! Ninguém vai sentir falta de um fedelho desgraçado e cruel como você! - o bicho começou a me arrastar pelo chão até a porta, assoviando aquela música de Natal que todo mundo canta.
Eu me sacudia e batia naquela coisa, mas ela não ligava. Daí, com muito esforço, consegui falar que não era o Juquinha. O bicho parou e me prensou com muita força na parede. Eu chorava e tentava falar meu nome, mas ela mandou eu ficar quieto e olhou bem no fundo dos meus olhos. Eu não sei explicar o que eu senti naquela hora, Papai Noel. Só sei que foi tão ruim, tão ruim que nunca mais esqueci. Aí aquele monstro então começou a rir sem parar e depois foi me jogou com tudo na árvore de natal. As luzes do pisca-pisca começaram a estourar e tudo foi ficando escuro e frio.
- Puta que Pariu... Garoto errado! - foi tudo o que eu ouvi antes de desmaiar.
Eu só acordei no hospital, todo machucado e enfaixado que nem uma múmia. Eu não consegui contar aos meus pais o que aconteceu. Eu não conseguia falar ou fazer nada, na verdade. Depois de um tempo, me falaram que o Juquinha e mais uns dois meninos e uma menina sumiram lá do bairro. Falaram que foi um maníaco e que minha história era "resultado do trauma" ou algo assim. Ninguém acredita em mim e agora vivo preso neste lugar que parece um hospital porque minha cabeça ficou toda bagunçada. Não falo nem faço coisa com coisa na maior parte do tempo. Tenho que tomar um montão de remédios todo dia e mesmo assim, ainda penso nele.
Ainda sinto aquele outro velhinho de vermelho olhando lá dentro de mim.
Eu sei que agora tem hora que não sou um bom menino. Que às vezes eu ataco os outros, falo palavrões e xingo eles de tudo o que é nome, que do nada eu destruo o que consigo pegar, que faço muita coisa errada quando as pípulas ou injeções não fazem efeito. Sei que já não sou mais tão criança assim. Mas só agora consegui ficar legal o suficiente pra te escrever esta carta. Eu não aguento mais, Papai Noel! Quero voltar pra casa, quero voltar pros meus pais, quero poder dormir de novo sem ver nem ouvir aquele monstro! Então por favor, por favor, Papai Noel! Me faz ficar normal de novo! É tudo o que eu quero este ano! Eu imploro, eu não aguento mais!
Só o senhor pode me ajudar, Papai Noel!
Ass: Garoto Errado".
Agora me digam: pelo amor de Deus, como é que a gente vai ajudar esta criança... E o que vamos fazer com esta carta?!