Um dia qualquer aí da vida, um cara me parou na rua e logo mandou
- Coé, moleque. Dá um real aí?
Mas eu, óbvio, fodido que sou, não tinha um puto no bolso e tive que responder
- Pô, cara. Eu sou da zona norte, não tem dinheiro nenhum. Tô ralando para achar um trampo, tendo que pagar aluguel e tudo mais... O máximo que eu posso te dar é o cartão do busão.
E o maluco, vendo que provavelmente eu estava mentindo, logo partiu pra cima de mim. Realmente achei que ia morrer, tomar uma facada, um tiro ou o que quer que fosse, pois, ninguém espera que um maluco venha do nada pra cima de você desarmado. Acontece que o cara do nada sumiu, ploft, pam, tchum... Do nada!
Eu tava meio assustado, em um momento ia morrer e no outro, pá, some o maluco e eu nem estava chapado, o que dificulta ainda mais chegar em alguma conclusão - afinal, chapados podem ter ilusões.
- Bom, já que o cara sumiu, melhor deixar quieto e ir pra casa. Puta que pariu, que porra foi essa? Hahahahahaha
E no trem lotado de volta à minha casa, tava eu sentado lá, do lado da velha, sério e escutando música, já que a única coisa que me acalma em momentos de trem é a música, logo cai na tentação de chegar à alguma conclusão.
Um ambulante gritando alto demais, passou me encarando e seguiu vendendo as paradas dele. Um outro ambulante fez o mesmo e um outro também.
- Tô fodido mesmo. Vai dar merda.
E uns quatro ambulantes tentaram correr em minha direção, só tava eu e a velha, imagina a merda que ia dar. Eu ia ser estuprado, tenho certeza.
- Coé, molecão, compra um bagulho aqui da gente.
- Você não vai pra lugar nenhum, hoje é com a gente.
- Fica sentadinho aí...
E a velha, as outras pessoas que estavam mais longe ignoraram completamente isso tudo. E pá! Do nada! Do nada, os caras sumiram!!
- Senhora, a senhora viu o que acabou de acontecer aqui?
Quem disse que ela me respondia? Tava loucaça só que de um jeito velho, provavelmente é isso... Tava velha.
E fui para minha casa, agora, de fato, sozinho e pensando no dia aleatório que eu tive... Em casa, a minha companheira não havia chegado, então tive o tempo do Mundo em frente ao laptop; fui pesquisar sobre desaparecimento instântaneo ou qualquer coisa do tipo - fora um ou outro maluco, não achei nada parecido.
- Que merda é essa? Um monte grilo. Só pode ser macumba, maldição, magia negra ou qualquer porra de alguma religião. Isso é a prova, é a prova de que algo além da gente existe.
E os grilos carregavam coisas, tipo, muito pequenas, mas visíveis e estranhas... Tinha uma cigarra bem diferente, parecia brava e inofensiva. Só podia ser aquilo... O Kafka transformou-se num ser enojável e eu transformei os que me afrontaram em seres igualmente horríveis.
- Vocês estão fodidos. Pelo jeito não podem fazer nada sem que eu esteja presente.
Eu peguei um isqueiro e queimei um a um, os grilos e a cigarra, sem dó, sem medo, fiz justiça pela primeira vez em minha vida com as próprias mãos e estava feliz demais por isso.
- Hoje é um novo dia, hoje eu posso transformar qualquer um em qualquer coisa, hahahahahahahahaha.
Saindo na rua, aqueles desaparecimentos foram gradualmente aumentando. Se antes, por uma ameaça, agora bastava direcionar o olhar para meu corpo que logo a pessoa sumia. E aquela deidade ou qualquer coisa de fé que mencionei antes, agora era claro de que existia: eu mesmo, uma deidade, maldição e qualquer coisa.
- Se eu soubesse que o Mundo podia ser bom assim, teria aproveitado mais.
Passaram-se alguns dias e eu já estava morrendo de tédio, ninguém mais restava, só restava insetos... Eu olhei para o jornal e fiz com que todos sumissem, eu naveguei na internet e fiz com que todos sumissem. Só restava eu mesmo, e já não tinha mais graça ser uma deidade.
- Será que dá de voltar atrás? Tipo, sou o tudo e o nada, já que transformo as pessoas em insetos e depois as queimo. É deveras importante que eu possa voltar atrás.
Dito e feito, voltei ao ponto de partida. Aquele em que eu fui parado por um maluco que podia ser Jesus ou Odin me testando.
- Coé, moleque. Dá um real aí?
Dessa vez, preferi mudar a resposta, pra ver o que acontece, né...
- Não tenho. Vai tomar no cu, vaza daqui.
E do nada o cara me atacou, pensei logo em transformar ele, mas eu já estava com um ferimento enorme na barriga. Logo eu, a deidade, a maldição, o tudo e o nada ferido, a faca atravessou alguns órgãos, pensei...
- A... A... A... Aj... Ajuda!
Os meus gritos foram aceitos, o cara havia sumido de novo, tava do meu lado a porra da cigarra. Eu ia ser salvo, daí, os ambulantes apareceram, como quando sumiram, apareceram do nada.
- Deu ruim pra tu.
- É hoje que tu vaza.
- Caralho, corte feião.
E me atacavam com pisoteadas na cabeça e no peito. Provavelmente eles queriam me matar, mas antes que isso fosse possível, eles também sumiram e estavam ao meu lado, eram os grilos de merda que eu tinha queimado. Eu me senti aprisionado. Ninguém mais me escutava ou via, talvez aquilo tudo estivesse acontecendo muito longe da civilização, não sei.
- A... Q... Q... Q... Que... M... Mer... Merda... É... E... Essa?
E senti além de todas aquelas dores (eu provavelmente já deveria ter morrido, mas minha condição como deidade não deixava ser tão fácil assim) uma picada? Ou era uma mordida? Tão pequena, mas tão dolorida. E os grilos e a merda da cigarra começaram assim, o processo de ingestão de carne humana. Eles estavam me comendo, aos poucos, aos milímetros, só que me comendo.
Porra.
Morri comido por grilos. Quem diria que grilos fossem carnívoros? De certo, só os da minha cabeça, o que já é suficiente para acontecer tudo isso.
Morri.