Rogério andava com manias de suicídio. Era um sujeitinho qualquer, como eu ou você. Tinha lá suas alegrias, mas também vivia frustrado parte do tempo. Um desses males da pós-modernidade, você sabe como é. Tudo e todos precisam lidar com pressões ostensivas, ser perfeitos, agir de acordo e estar nos conformes. Tudo e todos, desde uma colher a um sapato, um cachorro, um saco de pipoca, um encosto de porta, um humano, precisam de nascer, viver, estudar, namorar, rejeitar, ser rejeitado, ser sacaneado, sacanear, explorar, ser explorado, procurar emprego, ser rejeitado, procurar emprego, ser rejeitado, procurar emprego, ser admitido, mas não ser efetivado para, só depois, já no quarto ou quinto, conseguir de fato ter a carteira assinada, para daí trabalhar e trabalhar, e, na folga do trabalho, tomar um café, namorar, decepcionar e ser decepcionado, dar um pé, levar um pé, trabalhar mais um pouco, fazer faculdade, trabalhar, fazer faculdade, trabalhar, fazer monografia, se estressar com a monografia, mandar a monografia para o raio que a parta, apresentar aquela desgraça no semestre seguinte, finalmente conseguir diploma, arranjar emprego melhor, fazer pós-graduação, trabalhar, fazer mestrado, trabalhar, namorar novamente, casar, fazer viagens para o exterior, voltar, contar para os amigos das viagens feitas ao exterior, pedir divórcio, casar novamente, conceder divórcio, trabalhar, ficar velho, ficar muito velho, ficar muito velho mesmo, tipo uns dez ou mil anos a mais na face do que carrega nas costas, trabalhar, casar pela terceira vez, ter filhos, fazer outra viagem para o exterior, consumir, comprar, voltar, ostentar o que fora comprado na viagem ao exterior para os amigos, que, certamente, invejarão a aquisição, trabalhar, consumir, consumir e consumir. Aí, depois de seguir o ciclo por mais algumas décadas, finalmente se envelhece o que já se tinha envelhecido e se morre feliz. O que isso acarreta, bem: crises dos trinta, dos quarenta, dos cinquenta, dos vinte e até dos dez. Bem, danem-se as crises, concomitante ao que acarretam. Quem liga. Falávamos sobre Rogério. Rogério era infeliz. Ele não seguia totalmente essa rotina. Por isso queria se matar.
Rogério era bem comum mesmo, como qualquer estranho desses das ruas, que procuram comida nos latões de lixo. Ou que pedem esmola nos sinais. Ou que é operador de Telemarketing. Ou que sequer tem emprego. Ou que sequer se chama Rogério. Quem se importa. Imagine-o como aquele que só vaga para lá e para cá, sem destino, utilidade própria ou pública, sendo mero figurante da paisagem aleatória a qual você vislumbra por aí. Fato é que Rogério era frustrado.
Apesar de alegre vez ou outra, apesar de não seguir a rotina que achava que deveria, apesar de ser Rogério, apesar dos pesares, Rogério era frustrado. Só não se frustrava quando dormia. Por um acaso, Rogério gostava de ler. Um de seus escritores favoritos, Charles Bukowski, disse, certa feita, que as duas maiores invenções da humanidade foram a cama e a bomba atômica. Dizia ele: “Não saindo da primeira, a gente se salva; explodindo a segunda, se acaba com tudo”. Rogério concordava. Por isso não queria deixar a cama. Mas a deixou a contragosto. Por isso queria morrer.
Mas não queria morrer só por isso. Rogério já andava com manias de suicídio por bem antes. Desde que se entendia gente. Menino ainda, indo para a escola, imaginava como seria pular da janela e se esbagaçar sobre o carro do professor Pereira, professor de matemática responsável pelo trauma de Rogério em relação aos números. Ambicionava ver a expressão no rosto dos coleguinhas e do professor Pereira quando encontrassem seu corpo estatelado lá na fachada do prédio, e o carro do ano destruído. Mas, bem, não poderia ver. Estaria morto e morto não vê nada, achava.
O importante sobre Rogério era que queria se matar. Mas não se matou. Dizia para si que a situação melhoraria, que não precisaria fazer nada, pois Deus estava vendo e, homem bom que era, ele ia ajudar. Não ajudou. Rogério foi cristão. Não era mais. Brigou com Deus quando ele decidiu escolher outro para ganhar a Mega-Sena da virada do ano passado em seu lugar.
Fato é que Rogério cansara de esperar, de se angustiar, de viver frustrado. Decidiu que iria se matar e ponto final. Afinal, só ele podia decidir tirar a própria vida, não importava o que padres, sociólogos, psicólogos, professores, policiais, bombeiros, médicos, fisioterapeutas, jornalistas, marqueteiros, políticos, desgraçados, cidadãos de bem dissessem. Que tinham eles a ver com a vida de Rogério? Nada! Decidiu se matar depois de beber a última dose cavalar de uísque. Pronto, já bebeu. Ia se matar naquela noite e daquela noite não passava.
Rogério subiu na mesa de centro da sala, amarrou corda no pescoço e debruçou-se. A corda arrebentou. Inconformado, decidiu cortar os pulsos. Foi na cozinha, pegou faca qualquer e se cortou. A faca estava cega. Pegou uma segunda. A segunda também estava. Pegou a faca três — seu número da sorte. Concluiu que daria certo. Não deu. Rogério decidiu então se furar. Iria se furar. Apunhalou sem dó a lâmina contra o coração, mas acertou foi um soco no peito. A faca escorregou. Não se furou. Não cortou a mão. Não cortou nada. Ela também estava cega e, pior, a ponta havia se quebrado. Mas será possível! Gás de cozinha. Gás de cozinha daria certo. Lera na internet que aquilo funcionava. Arriscou. Girou o mecanismo do bujão. Lembrou-se então de que não tinha bujão; que não tinha gás. Esquecera-se de comprar o daquele mês. Outra opção, morrer eletrocutado. Não daria certo. A energia fora cortada. Rogério pensou em afogamento. Será que havia água no cano? Pensou em defenestrar-se. Mais provável que houvesse um trampolim que jogasse o corpo de volta ao apartamento. Pensou em carbonização. Com aquele tipo de sorte, poria fogo no país, e ele, intacto.
Por fim, Rogério desistiu. Frustração! Aqueles tempos estavam tão difíceis, que até se matar parecia tarefa árdua. Concluiu que ficar vivo e triste exigia menos esforço. Melhor seria ir para cama e voltar a dormir.