Praça Vendôme
“Vive La Commune! ”
Era um junho de 1870 em Sedan, estava fraca e desnutrida, meio tonta, mas forte o suficiente para cambalear até meu destino. Rastejava o esqueleto pelo secume que se alastrava por toda Paris. Mal tinha o sustento das pernas tamanha era a fraqueza dos ossos. Andava alguns poucos passos e gemia, doía-me as tripas carcomidas. Escorava-me nos muros das casas, como se fosse morrer por asfixia. O ar matava aos poucos, cada vez que respirava eram lâminas que desciam no gargalo, sentia o gosto do sangue no estômago. A temperatura sufocava. Eu tinha aquela inexpressividade na face, de quem não se chocava com a ridicularidade do absurdo, demasiada era escassez de alimentos primários e pobreza extremada por toda parte. Estava em estado hiperbolicamente glacial. A saliva não mais se produzia em meu organismo. Sentia-me endurecer a alma ao soprar dos vapores congelantes quais meu pulmão exortava. Tinha fome. Comeria os dedos se fosse necessário, mas não poderia sucumbir agora, não agora, cuja fome de liberdade me comia inteira. A bulimia se contraía no vazio; quisera eu ser a única míngua e não milhares de olhares cansados. Outros mesmo que vivos e altivos, mortos de medo. Comia ratos para resistir. Eles invadiram as tantas casas e fábricas vazias. Só precisava sentar ao chão e esperar meio minuto. O cheiro da morte os atraía, vinham aos montes. Subiam pernas, braços e pescoço; ainda temia não conseguir levantar, ter forças para agarrar um. Pensava no que fazer enquanto perambulavam na carcaça, mordiam-me. Não sentia dor tamanho buraco se integrou ao fundo do umbigo. Abri a boca, não foi preciso esperar nem dois segundos, para que três ou quatro enfiassem a cabeça dentro, tentando arrancar-me a língua. Mordi-os com tanta esganação que arranquei a cabeça de um, o outro ficou preso entre dentes, os outros fugiram. Terminei de matar o que estava vivo. Ele estatelava os olhos enquanto lhe mastigava as fuças. Precisava manter-me e sobreviver.
Tudo acabado! Já não era tão sem cor, nenhuma couraça evidente, a não ser o vermelho espalhado por todo corpo, na roupa suja e fedorenta, qual limpei a boca e a mão depois de estripar os canalhas. Foi gostoso, eu percebia uma sutil vitalidade se apropriando do meu corpo magro e chupado, um varapau. Levanta! Anda moleza dos infernos! Não hei de arriar. Não o fiz nas mais de 16 horas de trabalho duro, não será nesse momento de rejeição que o farei. Paris, ah Paris... minha amada, porque sói tão dividida? Não é de direito do Ser a vida? Eu noto este povo se armando para defende-la, armistício de merda. Fluía dos pensamentos em fúria, isso é traição! A elite temia a audácia que me corroía, os despretensiosos armados os assustavam. Despojados de tudo, mundana vida. Berço não, só braço, e dos fortes ainda! Trabalha, trabalha mula das ancas caídas, besta velha. Não tinha eu condições de escola. Esmolava uma rima, mendigava nas esquinas, pedinchava nas portas quando nem trabalho mais havia certa idade. Tudo quase parado, inópia de porre. A tensão aumentava, o medo assombrava o povo, o descaso com o pequeno proletariado tomava tamanho. O temor arde, faz sentir as cadeiras até do Governo de Defesa Nacional parisiense. Tenta admoestar minha ira, antes mesmo do pensamento se criar e esbaforir direções. Aprumem seus sacos moles, que não hei de deixar nossas crianças morrerem de sede. Do desejo líquido. Vontade desmedida de molhar a língua e o cérebro. Ainda que a educação não seja gratuita, minha alma se enche em vida ao entrar nas escondidas guaritas, proposta a ensinar as meninas. Eles foram excluídos do letramento para poderem servir a escravidão contínua. Mas rabisco B-A-BA em meio aos estrondos dos canhões. Em cada linha de discussão os ombros saltam dos velhos bancos, as sobrancelhas arrebitam-se num ritual de vigilância. Minha roupa está cheia de sangue, minhas mãos pintam de rosa o giz branco como no sorriso delas.
Logo amanhecia, inda nem bem havia deitado os restos mortais e já lavava o rosto para labutar. Escravidão sem fim. Entro às sete horas da manhã. Levo minha marmita em uma bolsa de pano velho, um pedaço de pão que ganhei de um comerciante, pois não saia da porta dele. Não incomodava, mas aqueles bolos eram de encher os olhos, paralisavam-me, sonhava acordada. Escorria uma baba da boca entreaberta e eu a secava com a mão. Por alguns segundos, esquecia-me da sala de aula e da gana de liberdade. A fome gritava-me! Bati o ponto. O barulho das máquinas desnorteava meus pensamentos secretos, tomava cuidado, os capatazes cuidavam deles. Olhavam-me o tempo todo, desconfiava que liam aforismos e tinha medo de soltar os meus. Deixava o barulho me inundar, desatinava-me desconfiança dos horrores que poderia passar se titubeasse. O dia passou ligeiro, último turno na tecelagem. Hora de mudar a canela de fio da lançadeira pela centésima vez. Estava exausta, meus olhos descuidavam dos sedentos a minha volta. Senti um puxão no cabelo, eles quase foram engolidos pelo aparelho. Virei-me rapidamente, perguntei. Quem está aí? Aparece covarde desgraçado! Levei uma paulada na cabeça e o céu escureceu. Não fui dar aula nessa madrugada. Os olhos custavam a abrir, pelejei para sentir o ar saindo das narinas, uma crosta de sangue duro os encobria. Meus olhos estavam grudados, não via nada. Apalpei a mão sobre eles, sobre meu rosto todo. Encontrei um taio na cabeça do tamanho de um giz, coloquei a mão para sentir a dimensão do estrago e o sangue já havia aglutinado. Segurei a pálpebra de cima bem forte e puxei a outra parte para baixo, meus cílios se arrancaram. Segurei o agudo da voz, não sabia quem estava por perto. Consegui abri-los, ainda era noite, apalpei o chão e senti uma espessura imunda.
Logo, dei-me conta que estava largada, num quartinho fechado cheio de palha que fedia a mijo. Urinaram-me não havia dúvida. Fleches da luz da lua entravam pelas frestas. Percebi minhas vestes rasgadas e sem as calçolas. Havia marcas de dentes por todo meu corpo, meus peitos estavam roxos, sangrava-me o íntimo do pudor. Olhei em volta, ninguém, nem os ratos devem ter visto tal cena repugnante. Tentei levantar, agachei-me. Meus ossos entre o ventre e as coxas doíam, molestados estavam, a paulada não deve ter sido só na cabeça. Arrastei-me até uma das paredes, usar-lhe-ia de escora, assim, consenti que pernas e braços tomassem força, fui me apoiando. Os joelhos tremiam, estava com medo mortífero de fraquejar. Ato execrável que me consumia em dor. A alma latejava. Meu corpo era só um desejo sofrível, não se sustentava, não sentia reação, nem mesmo as partes da pele. Estiquei a perna por completo, desarquei-me, não me olhar, não pensava em nada, não queria chorar. Uma cólera se aboletou em mim, e foi dela que a coragem se firmou. Fui arrastando os pés até encontrar a rua, precisava vomitar as sujeiras. Coisas atrozes não acontecem somente nas guerras, basta um fio condutor de insanidade e as ações infames e cruéis surgem. Pronto! Livrei-me do terror e do ódio. Expeli a própria boca, jorrava sangue. Lançava violentamente para fora a brasa do canhão, gorjetava no fogo gosmento o vômito da injúria. Quis chorar. A voz quase não saia. Socorro…. Ajudem-me, por caridade, ajudem-me. Não contive às lagrimas alguns minutos do trajeto de volta para casa. Uma vizinha me esperava na porta, queria saber das aulas, porque não havia ido naquela madrugada. Achava que havia sido capturada pelas tropas prussianas ou de Versalhes e morta. Ela percebeu meu real estado e tratou de procurar assistência. Antes, abriu a porta e me ajudara a deitar; eu necessitava mumificar o arcabouço externo. Bem rápido chegam as três, a costureira e as lavadeiras, graças a Deus todas eram mães. Esquentaram água, lavaram minhas feridas, costuraram minha cabeça, passaram um creme caseiro no meu corpo dolorido e em minhas particularidades, rezaram. Mal sabiam elas que a chaga maior rasgava meu coração.
Belleville inteira ficara sabendo, uma semana sem aparecer no serviço, não aguentava evacuar as podridões que se geraram em mim. Meus velhos hábitos voltaram a se veicular em uma certa tarde, vesti-me, comi uma batata que deixaram cozida na minha mesa. O trabalho noturno das poucas fábricas abertas, com jornadas de trabalho de intermináveis horas, desolava-me as veias. Ainda que veja do lado de fora da janela das casas o pó que as consomem e do meu salário sobre só o pão e leite. Ainda viverei mais, o dia em que os soberbos caminharão sozinhos. Separar-se-á a Igreja do Estado e a igualdade entre os sexos for instituída. Lembro-me de uma vez, quando mais jovem e ainda pobre, não conseguir associar o que estava escrito com o que o padre pregava em seus conceitos. Quisera saber, mas não lia bem na época. Não esqueço das carrancas fechadas todas as manhãs de domingo. Ou não gostavam do que faziam, ou a palavra de Deus era pesada demais para que se fingissem verdades ocultas. Se a Igreja se importasse mesmo com os seus fiéis não os abandonaria a própria sorte. Não deixaria o descaso do governo com os menos abastecidos se propagar. Os Padres deveriam pregar sermões de exemplo da partilha. Creio que tenham pregado, contudo a partilha era só entre eles, ricos burgueses, Igreja e Estado. Maior egoísmo do comando da Casa de Deus era não apelar pelos mais fracos. Dos banquetes, cujo resto eram oferecidos aos roedores, filas de parisiense se formavam nas saídas dos esgotos pelas proximidades, em busca das ratazanas mais gordas. Evidentemente, assassinaram um povo fiel mais de uma vez. O governo levava o país ao abismo por suas galopantes inércias nas ações contra a Prússia. Até se aliar a ele. Solados eram enviados como estratégia de tempo. Recordo de ouvir Lissagaray em minhas espionagens “que haviam sido enviados a fim de ser sacrificados”. Carnificina. Cartazes abrolhavam nas madrugadas, convocando caminho, impetrando passagem para a Comuna. Governo cagão! Assinar um acordo de paz preliminar em pleno aniversário da Revolução de 1848, foi um tiro no pé. Eu observava as tropas prussianas marcharem em Camps Elysées. Imperativas. Que humilhação! Thiers tirano, déspota! Nos vingamos. Ficamos conhecidos como ‘a cidade do ódio’ em Belleville. Renegamos a retirada dos canhões, tomamos posse, precisávamos nos armar mais.
Enojava-me a imunidade exclusiva da lei consolidada pelos advogados. A tática de cheirar o rabo dos banqueiros. Entre o juramento judicial e honorários exacerbados, o povo fica sem roupas. Os casamentos eram pagos a esses roazes, ainda bem que a pena de morte não havia sido abolida ainda, assim, eles se matavam uns aos outros. Infelizmente davam um jeito de guilhotinarem os clientes desprovidos. Naturalmente, em menor proporção que a guerra. Tenho um plano, mas preciso de força senão serei traída por falta de fósforo. A Igreja de Brea, elevada para saldar os homens envolvidos na repressão da Revolução de 1848 deve vir abaixo. O local de penitência de Luís XVI e o pedestal Vendôme também. Preciso adotar uma bandeira, com símbolo dessa nobre causa que se instaura em minha cabeça - “Unidade Federal da Humanidade”. Em minhas unhas o vermelho sangue se encravava. Não saia, já era parte. Bandeira vermelha, cujo sangue parisiense pintara. Decidi não ir trabalhar mais, lecionaria depois período integral sem cobrar nada, que só me ajudassem no que comer. Fiz reuniões clandestinas com as alunas, depois com os pais. Juntávamos pensamentos. Os debates eram fervorosos e cada dia o número de pessoas aumentava, participavam ativamente das tomadas de decisões. Éramos muitos, vindos de muitas origens, belgas, italianos, poloneses, húngaros, entre outros. Todos pobre, pequenos comerciantes, operários, sitiantes, comunistas de espírito e outros influentes intelectualmente. Isso não nos tornava diferentes, nem indiferentes a situação de miséria que nos assolava. Minha casa passou a ser nosso escritório no início, depois fomos para uma central. Precisamos pensar em reorganização, em todos os sentidos, incluindo finanças, correios, administração geral, assistência pública e telégrafos. Mudar o salário e diminuir as horas de pugna do trabalhador. Quero instituir um Escola Pública e que os artistas dirijam teatros e editoras. Eu poderia ter um salário como professora equiparado aos dos políticos, visto que das teorias e fundamentos repasso logo após aprenderem a ler. Poderia não os ensinas a somar e multiplicar, quem sabe não ostentariam tanto. Quero tanto tantas coisas que não me cabem no peito. Ele incha de ansiedade, voraz felicidade do apetite.
Não quero nada que seja patrimônio do Estado. É do povo parisiense. Articular, é disso que careço. Correria os riscos da manipulação. Meu subconsciente previa a discórdia dos membros dessa Nação. Pobres e ricos não se entendiam. Não lhes doía a consciência. Mesa farta, cobertor grosso. Regalias que dispunham também alguns intelectuais de berço. Outras guerras já haviam agravado a crise, o ato que propunha era um dos que surgiam em Paris. Muitos movimentos sociais dos operários aparecendo. Preciso de um norte. Um suporte para algo maior. O nome que nos identifica é tudo. Deixarei os propagandistas ativos da causa a pensar nisso. Courbet é mais influente, vai saber estrategiar. Ainda tenho que conversar com Rimbaud e Pissaro, reunirmos e detalhar tudo. São artistas e grandes intelectuais também, contudo simpatizantes de minhas ideias. Já éramos Communards. “Vive La Commune! ”. Jamais desarmarão os trabalhadores de Paris. A Guarda Nacional passou a nos apoiar, tivemos um tempo para respirar e discutir novos rumos. Sou parte da extinta administração do Comitê Central Revolucionário. Um dia alegre para os cidadãos de Paris, e de desgosto para alta elite. Nossa Comuna tinha uma gama vasta de favoráveis, republicanos atenuados a jacobinos, socialista da Internacional e proudhonistas, além de agitadores blanquistas. Queríamos um futuro de igualdade a todos e em tudo. Quase fui pega com meus pensamentos altos, não fosse as pinceladas de Courbet. Em suas telas eu sabia do realismo gritante. Cala-se! Na coerência do coração e nos discursos não tão maduros, tivemos pouco tempo de Paris. Já se passara dois meses de abruptas mudanças. O trabalho noturno e escravo se esvaiu, o Estado se separou da Igreja, houve reabertura de fábricas. Entretanto, o silêncio da mesquinhes burguesa me causava náuseas.
Algo de penetrante me espancava os sentidos. Meus ossos tiveram refrações múltiplas de Sedan e Belleville. Na capital francesa, a comoção da conquista explodia os órgãos vitais de cada cidadão. A consequência da repudia ao armistício era um estado de choque permanente. Ter vencido a elite burguesa foi um feito memorável. Um abalo orgânico. Não vomitarei minhas tripas se tudo isso escoar a ralo. Era hora de destruir a coluna de Vendôme. Ideia de um artista do qual devo minha vida e tenho apreço. Uma época de insurreição para nós Communards. A guerra franco-prussiana parece não acabar. Não havia mais valas, o cemitério não os esperava. Era impossível contar os mortos, tamanha correria naquela época. Nossas almas patriotas falaram mais alto. Pelos trabalhadores! Por Paris! A coluna de Vendôme sucumbirá. Era 14 de setembro, uma petição da Defesa Nacional alimentou nosso desejo de equidade. Avante Comuna! Esse monumento da barbárie é símbolo da força desnecessária e da deslealdade. Avante Communards! O pedestal é um insulto dos vencedores aos vencidos. “Liberté, égalité, fraternité”. “Vive La Commune!”. Uma multidão caminhava em direção à Praça Vendôme. Estávamos decididos, colocaríamos tudo abaixo. O suor escorria nossas faces. A tensão que nunca saíra de nossas expressões parecia tomar-nos de assalto. O momento era de bravura. O ar estufava o peito de coragem. Os gritos de igualdade e liberdade surgiam, emendavam as ruas num acústico impetuoso. Esparta já não era história. Buscávamos a fraternidade, pois somos filhos de Deus como qualquer outro nascido nesse planeta. As marchas vinham de todos os cantos, de todos os bairros. Reunimo-nos na praça. Amarramos cordas fortes ao redor de toda coluna até o topo. Puxem… puxem! Napoleão ao chão. Outra vitória nos poluía a alma de sonhos. A glória seria breve e não nos dávamos conta dos recados ocultos. Tínhamos que usar o cobre exorbitante da coluna para construir armas. Algo me dizia para não baixar os olhos. Mesmo nas vitórias uma empáfia ventania varria a emoção contundente das minhas vistas. Depois de algumas horas, a praça se esvaziou. Algumas reuniões se efetivaram. Tudo parecia caminhar bem, conforme planos. Muitos não percebiam que mal do assombro seria agouro.
Em uma manhã fria, sem bem levantar meu cadáver da cama, os bombardeios começaram. Reunimo-nos. Escondemos as crianças. Os canhões cuspiam fogo da Colina Montmartre. Senhor, não nos deixai! Justo agora que os pobres pararam de pagar impostos discrepantes, que sacerdotes corruptos foram presos, que conseguimos reabrir fábricas. Não irei sucumbir, avante Communards! Os gritos ecoavam de todas as partes. As mulheres tomaram frente de muitas batalhas. Não foi diferente, colocamos fogo em pontos estratégicos, queimamos os prédios, o castelo das Tulherias, ruas inteiras foram consumidas pelas labaredas. Enquanto dormíamos em nossa estúpida comoção cerebral, Thiers reforçava-se com a Prússia. Na surdina planejavam nosso massacre. O fogo se espalhava. Soldados presos na primeira revolta foram libertos e forçados a lutar contra nós. Estavam em maior número. Porém nosso civismo transcendia a pusilanimidade. Tudo estava em chamas. Corremos. Soldados fizeram um cerco por toda Paris. As mulheres continuaram incendiando prédios estratégicos, aos poucos eram pegas e fuziladas. Recordo-me de estar em fuga, estava suja e cheirando a querosene. Os corpos dos Communards mortos espalhavam-se pelas ruas. Na correria qual estávamos, tropecei em uma pilha de corpos ensanguentados em uma esquina. Algo saiu errado, pensei que fosse de raspão o tiro. O ar me faltava, estava sufocada pelo terror horrendo que se ascendia em mim. Incendiava-me. Logo à frente, as mulheres foram pegas, fingi-me de morta. Colocaram-nas contra parede e fuzilaram todas. Não as fizeram prisioneiras, nem as deram o direito de responder sobre o ato. Não tiveram tempo de se despedirem de seus filhos e maridos. Foram-se como tantos outros. A semana sangrava-me as vísceras.
Minha paz não merecia o ódio horrendo dos olhos daqueles soldados. Eles lutavam pelo quê e porquê? Thiers maldito! Chacinou seu próprio povo em nome de quê? De uma burguesia cuja altivez era emblema? Eis os adjetivos que os impetram orgulhosos arrogantes, miseráveis prepotentes. A presunção era vizinha madrasta, enquanto se achavam superiores cruéis, tornavam-se intolerantes com aqueles que nada tinham. Mendigar para eles era uma vergonha, não queriam ver, ouvir ou assumir a desigualdade. Nunca planejaram mudanças, senão aquelas que dessem literalmente fim a esses pobres. Todos os horizontes giravam em torno de minha palma, a calma que me cercava a alma, nada mais era sombra. Os restos mortais de tantos forravam as ruas, não havia mais como negar que estávamos perdidos. Na rua Lafayette vi um amigo morrer, era Eugene. Ele não se entregou, lutou contra sua captura até o último instante. Amarraram seus braços, fizeram-no andar sob golpes dos fuzis. Eu estava escondida, escutei ele gritar “Por Paris, pela comuna!”, muitas vezes. A cada porrada que levava dos soldados, levantava e gritava mais. O levariam para a Colina de Montmartre. Chegaram do lado de onde estava escondida, agachada dentro de uma casa abandonada. Pude ver parte do osso de seu crânio afundado e outro exposto, um de seus olhos estava pendurado para fora. Sangrava muito. Fizeram-no andar mais e o perdi de vista. Arrasada, sozinha, como poderia ajudar. Minhas lágrimas não se continham. Não conseguia sentir ódio, só a compaixão me habitava. Seu destino seria a morte, seu corpo seria cravejado de balas. Uma parte dos parisienses que não comungavam com nossas ideias, ficavam eufóricas com a surra que Eugene levava. Em uma rua qualquer eu escutei os tiros. Já sabia, mas tive a certeza de sua morte.
O 28 de maio clareou, pensava ser mais um dia de batalha, a Comuna estava fraca, mas ainda tínhamos coração. As lutas foram cada vez mais vorazes, qualquer suspeito era imediatamente fuzilado. As tropas de Versalhes avançavam a cada bairro. Restava a Comuna erguer mais e mais barricadas com pedras e sacos de areia, não os impediriam, mas os atrasariam. Inúmeros foram os reféns, entretanto todos foram fuzilados. Vi o arcebispo de Paris em um dos fuzilamentos, era simpatizante da causa. Os mortos eram milhares. Os defuntos exalavam um odor insuportável. Seus corpos eram lançados em lagos, depois flutuavam podres e cheios de gases. Eram retirados e empilhados à margem, as barrigas explodiam deixando o odor se espalhar por toda Paris. Não havia um cidadão que aguentasse se sentar à mesa nas refeições, tamanha esfera fétida das decomposições largadas ao léu. A barricada foi tombada, era nosso fim. Sentia ter sido capturada. Rumo a um muro frente a um jardim. Todos foram fuzilados. A semana sangrenta terminara, os cadáveres estavam espalhados em quintais, ruas, parques, igrejas, dentro de lugares usados para refúgio. Muitos adolescentes foram friamente aniquilados. Fora o maior massacre que a França proporcionou contra seu próprio povo. Nós fomos vistos pelo mundo posteriormente como a primeira república proletária, adotamos o socialismo, éramos bons. Volta e meia me dói o pulmão, nunca me dou conta do que me atingira na correria dos dias de incêndio. Conto vagamente as lembranças que tenho daqueles dias de glória e derrota. Ainda sinto me asfixiarem o discurso. A sensação de falta de ar sempre me acompanhou. Mesmo quando morri de fome, quando morri no estupro e quando morri naquele tropeço. Eu ainda vejo tudo repassar. Minha mente perambula por Paris. Fica vagando entre as ruas. Nem tudo foi em vão. Muito conquistamos com nossos esbaforidos gritos e vulcânico sangue.
Os temperamentos que elevavam os sons dos corações em um único pronunciamento de unificação “Vive La Commune!”. Era o que me movia, e é o que me move até hoje, todas as vezes que a noite cai, ouço os passos noturnos vindos de todas as direções, querem me pegar, meus olhos ainda são vigilantes, mas sou levada por um sopro de vida, vinda dos ventos da colina à Praça Vendôme. Fico a observar a coluna ressurgida. O insulto fora reerguido. Meu estômago contorce-se de dor, as tripas enfurecidas sangram a fome, oráculo da vergonha. Poderiam erguer uma barricada em minha homenagem, seria melhor elogio. Ou um muro bem alto e cravejado de balas. Os ventos continuavam a assobiar em meu ouvido, muitas e muitas noites. Vejo vultos de almas penadas passarem lado a lado em direção à Praça Vendôme. Elas me olham, esperam que eu as acompanhem, estendem-me a mão em súplica. Eu vi Eugene, Courbet e tantos outros me estenderem as mãos, seus olhos cheios de lágrimas. Agora podem chorar o que dantes estava lhes sufocando. Adeus Louise. Tu foste inspiração em meus hábitos, entretanto cara amiga, nunca senti paz, não consigo partir. Todo 31 de outubro, ao abrir dos olhos, deparo-me com a coluna Vendôme. Meu coração não sabe o que sente, talvez a paulada na cabeça deve ter massacrado meus miolos, de certo modo sim. Antes do sangue coagular a cavidade craniana expeliu pedaços da mioleira dos centros nervosos. Desarquei-me, eu vejo os rastros dos passos. O cheiro de enxofre me aguça as narinas. Não ouço nada, um vazio constante desde Sedan. Olho para meus desejos e vejo os ratos entrando em minha boca. Canalhas! Não lhes darei nada, não consigo levantar, vagamente me recordo, eles me sufocaram, comeram minha carne. Meu desejo tornou-se sombra. Não sei do tempo, espero que ele esqueça de mim. Eu leio um jornal caído a meus pés em frente a coluna Vendôme. Ali diz, 31 de outubro de 2016, comemorações da semana. Surgem listas imensas de festas. Pergunto em que parte do trajeto me perdi. Não sinto nada, a dor é uma lembrança e a fúria não se tornou ódio. Ainda penso em não abrir os olhos, mas os gritos ecoam em minha mente, perturbam-me. Querem outro plano, mais fogo, mais buracos de bala. Hades versa meus passos bem antes de 1848. Não posso ir contigo Eugene. No próximo 31 deverei voltar. O fogo cospe meu nome. Conflito, intimido-me. Vago por Paris a buscar o que ninguém conseguiu deter.