E aqui, em cima de uma cadeira, com uma corda amarrada ao meu pescoço, penso pela última vez em como cheguei até aqui. Em como tudo me levou a querer acabar com minha própria vida, como a minha existência chegou à beira do insuportável. Como Aquilo conseguiu esfarelar a minha vontade, meus sonhos e meus desejos, transformando-os apenas em agonia e desespero. Agora, frente a frente com ele, com meu olhar fixado em seus grandes olhos vermelhos, minha vida passa pelos meus olhos.
Desde a minha infância, eu sempre me senti observado. Mesmo quando todos me deixavam sozinho, no escuro do meu quarto ou de uma rua deserta, eu nunca estava sozinho. Desde pequeno, Aquilo estava comigo. Ele estava sempre lá, quando as luzes se apagavam, quando minha mãe deixava o meu quarto e fechava à porta, lá estava ele. Com seu corpo negro, como se fosse pintado de carvão, e seus grandes e temerosos olhos vermelhos. Eu me escondia embaixo de minhas cobertas, porém, nunca consegui me esconder dele. Porque ele sempre estava lá quando eu abria meus olhos. Aquilo sempre estava lá.
Mesmo com noites de sono precárias e crises de pânico a todo momento, eu consegui chegar à adolescência. Cheguei ao ensino médio, mudei de cidade, fiz novos amigos, comecei uma vida nova, e por algum tempo, esqueci completamente da existência de Aquilo. Embora no meu sono eu continuasse me sentindo observado, embora nas minhas caminhadas para casa tarde da noite eu me sentisse perseguido, eu não mais tinha visto os seus olhos vermelhos, mesmo que lá no fundo da minha alma, eu soubesse que eles estavam lá.
Até que um dia, eu decidi ir atrás dele. Chamei alguns amigos para a minha casa, compramos velas, um tabuleiro para conversar com espíritos e nos preparamos com tudo o que conseguimos achar na internet. Eles sabiam que eu era atormentado por um espírito, todos sabiam. Consegui fazer contato com ele. Perguntei seu nome, e ele moveu as peças para se revelar. AQUILO, era seu nome. Um nome simples, um nome que poderia significar qualquer coisa, mas a partir de agora, era uma palavra que eu nunca mais iria querer utilizar. Eu perguntei o que ele queria de mim, porque me importunava, porque não procurava outra vítima ou azarado para atormentar? Haha, ele não me respondeu. Meus amigos tremiam, gotas de suor caiam da minha testa, mas eu não conseguia mais me segurar. Aquele era o momento e Aquilo tinha que acabar agora. Mais uma vez eu perguntei a ele. O que você quer de mim? E ele respondeu. Movendo as peças do tabuleiro, ele se fez presente, eriçando todos os pelos que eu e todos os meus amigos presentes tínhamos em nossos corpos. Ele escreveu “MORTE”. Era isso que ele queria. Era isso que ele iria atrás.
As luzes se apagaram nesse mesmo instante. Todos começaram a gritar e se debater no chão de repente, porém não eu. Eu estava paralisado, olhando para o tabuleiro, no meio da escuridão. Será que desde o dia em que nasci, eu fui destinado à ser amaldiçoado? A ter um espírito demoníaco atrás da minha vida? O que ele iria ganhar tanto com o meu fim? Pobre de mim, fui ricocheteado de volta ao meu corpo, antes perdido em pensamentos, quando vi a grande luz vermelha ganhar lugar em meio à sala. Aquilo estava lá. Depois de tanto tempo, novamente o vi. Seu corpo negro, riscado de carvão e seus olhos vermelhos. E só então percebi que todos os meus amigos estavam deitados, quietos, no chão. E sob a luz demoníaca eu vi que todos estavam mortos. Não havia sangue, não havia sinais de violência ou de alguma forma de tortura. Eles estavam de olhos virados, com a boca espumando, como se tivessem sido envenenados. Ou amaldiçoados, por estarem comigo. Virei meu rosto novamente para Aquilo, e ele abriu sua boca, uma enorme cratera, sem pele, sem sangue, sem dentes, apenas um buraco enorme abaixo de seus olhos. E esse monstro começou a arrancar pedaços dos meus companheiros para comê-los. Eu gritei, eu corri, pois pela primeira vez eu escutei o som gutural que Aquilo fazia quando abria a sua boca. Quando triturava os ossos, quando engolia a carne e os órgãos das pessoas que eram importantes para mim. E no exato momento que eu saio da casa, piso no asfalto, eu sinto o queimar. Minha casa, pegando fogo, eu já sabia disso antes de olhar para trás, e quando olhei, me arrependi. Lá estava Aquilo. Na porta da frente, olhando para mim. E como nunca na minha vida, eu corri.
E eu corri, corri por minha vida. Passei por muitas ruas, mas ele sempre estava lá a me observar. Passei por várias lojas, vários cruzamentos, vários estabelecimentos, mas ele sempre estava lá. E eu não parei de correr. Enquanto ele não sumisse, eu não iria parar de correr. Eu não conseguia mais olhar para Aquilo, eu precisa fugir e fugir para o mais longe que eu pudesse. Em todo beco, seus olhos vermelhos me acertavam, e meu coração começava a bater como se meu sangue fosse areia, e tudo em mim estivesse entupido, fora de ordem, fora de funcionamento. Eu tropeçava, mas não parava. Eu caía, mas não parava. Porque sempre que olhava para trás, lá estava Aquilo. E Aquilo não parava de me perseguir.
Não sei por quanto tempo eu corri, por quantas horas, por quantos dias. Mas chegou um momento que eu não pude mais. No limite da cidade, uma grande ladeira que acabava em uma floresta, eu tropecei pela última vez e caí, rolando e rolando para dentro da escuridão. Devo ter batido a cabeça em algum momento da queda, pois a partir do tropeço, não lembro mais de nada.
Acordei no meio da floresta, com nada ao meu redor, apenas uma cabana abandonada. Mas mesmo no ápice do meu cansaço, com minhas pernas dormentes, sem conseguir me mexer, eu tive paz. Atrás de mim, a forte luz vermelha dos olhos do demônio começou a crescer. Não, não, não, eu não queria olhar mais para ele. Eu não aguentava mais ter que viver com aquilo. Mas minha força de vontade não era tão forte quanto a presença de Aquilo, e logo eu me virei. Lá estava ele, olhando para mim, sem pronunciar palavras, sem demonstrar gestos, sem sequer mostrar algo que não fosse indiferença. E aquilo me irritava, Aquilo me irritava e esse foi o sentimento que eu descobri agora. Raiva, ódio. Comecei a gritar com ele, não importava que fosse um espírito, um demônio, ou que não tivesse língua, não me importava, eu gritei.
Porque quer acabar comigo? Porque me atormenta? Porque não vai procurar algo melhor pra fazer lá no inferno de onde você veio? Cuspi as palavras com toda a energia que eu tinha, e ele continuava lá, da mesma forma, como se não entendesse nada que eu falava. E depois de tanto gritar e espernear, eu me ajoelhei e comecei a chorar. Chorei porque não conseguia entender. Porque dentre todas as pessoas do mundo, logo eu tinha que ser atormentado. Logo eu tinha que estar sempre sob o pesado olhar dessa entidade. Porque logo eu tinha que sofrer. E como uma forma de compaixão, ou de tirar sarro de mim, Aquilo se ajoelhou na minha frente e fixou seus olhos em mim. E com os poucos centímetros de distância que havia entre nós, eu não consegui não olhar. Ele segurou os lados da minha cabeça, com suas mãos ásperas e nojentas. Mas tudo que eu conseguia ver eram os seus olhos vermelhos. E mergulhei dentro deles.
Lá dentro vi tudo de pior que havia no mundo. O fogo do inferno, gritos de pessoas mortas, pessoas sendo assassinadas nesse exato momento, pessoas sendo assadas e comidas em rituais, torturas, destruição, sangue, morte. Vi até meus próprios amigos, e como eles sofriam. E mais uma vez, chorei. Chorei como nunca chorei antes. Mas não conseguia parar de olhar, em como o mundo é cheio de monstros e sofrimento. Chorei e chorei e quis morrer. Como eu quis morrer. Não aguentava mais, eu queria deixar meu corpo, ir para onde quer que fosse, mas não queria mais ficar ali, junto com Aquilo, esse monstro desgraçado. Aquilo, como se me escutasse, levantou da sua posição e estendeu a mão para mim. Continuou a me olhar, com a indiferença de sempre, mas na minha posição, o que mais eu poderia fazer? Minha vida havia acabado já. Minha casa queimada, meus amigos mortos, minhas esperanças mortas depois das visões que ele me deu. Como poderia recusar a oferta que ele estava a me dar?
E aqui estou eu. Em cima de uma cadeira, com uma corda amarrada ao meu pescoço. Olhando para Aquilo, e pensando o quanto o odeio e o quanto ele é desprezível. Como um simples olhar me fez perder completamente a linha da minha existência. Eu o odeio. Eu me odeio. Odeio tudo. E mesmo que ainda haja outra forma de melhorar, uma forma de dar a volta por cima, de começar a viver novamente, Aquilo não me permitirá. Ele quer que eu morra e que eu morra agora. E assim eu pulo, e a última coisa que vejo são seus profundos olhos vermelhos. Para sempre e sempre a me observar.
Outubro de 2013. Um corpo foi encontrado em uma cabana, no meio de uma floresta, uma cabana que, de acordo com os moradores, não existia há alguns dias atrás. O corpo morto nunca foi identificado, pois ele foi carbonizado e depois enforcado. Os moradores das redondezas acham que foi produto de algum tipo de ritual das pessoas religiosas da região. A polícia afirma que as investigações irão começar, mas na verdade não há provas nenhuma de que outra pessoa esteve naquela cabana a não ser o corpo. Porém, como seria possível alguém carbonizar a si mesmo, se enforcar e não queimar nenhum outro pedaço da cabana? É um caso para investigadores profissionais. Ou até mesmo um padre.
Na frente da casa foi achada uma carta. Escrita com uma tinta vermelha, que está em análise agora para saber se é realmente sangue, e principalmente, se é do sangue da vítima. Nela, foram encontradas simples 10 palavras. Esse será um caso extremamente difícil para a polícia, mas todos faremos o possível para entende-lo e decifrá-lo.
O conteúdo da carta, você quer?
“Nunca olhe para trás. Aquilo sempre está a te esperar.”
E você? Consegue sentir a luz vermelha atrás de si também?