Agruras de um Encontro Infernal
Carolina Souza
Tipo: Conto ou Crônica
Postado: 26/10/16 16:45
Gênero(s): Drama Terror ou Horror
Avaliação: Não avaliado
Tempo de Leitura: 14min a 18min
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Este texto foi escrito para o concurso "Concurso de Halloween" No Concurso Oficial de Halloween da Academia de Contos, apoiado pela DarkSide Books, convidamos os participantes a escreverem textos no estilo "creepypasta", ou seja, obras detalhadas de terror escritas com o objetivo de assustar os leitores e deixá-los se perguntando o que é real e o que é ficção na história. Ver mais sobre o concurso!
Não recomendado para menores de dezoito anos
Capítulo Único Agruras de um Encontro Infernal

Nunca gostei de sair para jogar bola. Sempre quis ficar em casa e ler meus livros em paz ou assistir animes em qualquer canal, mas a mãe dizia que eu devia me exercitar e praticar esportes para ficar forte e assumir o lugar do pai na delegacia. Meu destino era ser o xerife da cidade. Eu não tinha amigos, porque numa cidade pequena como Japão, os moleques não estão interessados no mundo dentro do guarda-roupa ou no que acontecerá no próximo episodio de Dragon Ball, e sim se o Flamengo ganhou ou perdeu ontem. Outra coisa que eu nunca entendi é como podem viver em Minas e torcer por times do Rio, sempre me pareceu um jeito bem sutil de negar sua própria origem.

Nós temos uma competição para ver quem chegava primeiro ao campinho, e os dois primeiros podiam escolher os times. Essa era a maior atividade física do meu dia, já que eu tinha que me esforçar para pegar essa liderança, senão mal conseguiria jogar alguma partida e, apesar de não gostar, eu também queria participar. Era um tremendo perna de pau e os caras usavam várias artimanhas para não me deixar entrar em campo, enquanto me segurava para aceitar aquilo. Tinha dias que eu já sabia que não conseguiria ganhar a corrida, porque Carlos e João jogariam com a gente, e levava escondido da mãe alguma coisa para passar o tempo, como um livro do Neil Gaiman ou um quadrinho da Marvel.

Hoje eles dois virão com a gente, e só pelo olhar da mãe eu já sei que não vai ter como fugir, então pego qualquer coisa jogada por aí, guardo nas minhas costas preso pelo short e espero o Rennan chamar. O pessoal sai correndo e eu vou trotando para não chegar muito atrasado e armarem para me zoar de novo. Chego e estão apenas jogando. Sou o único que fica esperando a outra. Quando me preparo para pegar o livro ou revista que trouxe, o André zune a bola para dentro da floresta e todos começam a dizer para eu ir pegar a bola.

“Mas foi o André que chutou porra, ele que tinha que pegar.”

“Se ele for pegar a próxima vez é a dele.”

“Para de sacanagem, a bola foi lá pra dentro da floresta, eu nem sei por onde começar porque não tava prestando a atenção.”

“Ninguém aqui tá com pressa, né?”

O Rennan é um filha da puta mesmo.

“Agora vai lá buscar.”

“ok...”

Essa foi demais. É a ultima vez que tolero uma palhaçada dessa, mas vou procurar do mesmo jeito, até porque se eu não fosse naquela hora eles me obrigariam, com métodos piores. Corro para dentro da floresta que rodeia todo o campinho, e vou mais ou menos na direção do gol onde André deveria acertar. Me sinto mais perdido a cada arvore que passo, mas depois de um tempo, consigo achar a bola.

Um demônio a segura.

Ele se assemelha com as ilustrações nipônicas, mas parece estar entre o sólido e o gasoso. Sua imagem trêmula e a sua pele cor de fumaça branca ajudam muito nessa impressão, mas seus quatro olhos são os mais vivos e pesados que eu já vi. Sinto que o vermelho deles está consumindo minha imagem.

“Finalmente chegou o momento que nós esperávamos.”

“Que momento? Eu não sei quem é você, mas tenho certeza que nunca quis te encontrar.”

Sei que não posso tirar os olhos dele, caso contrário seria engolido por aqueles globos oculares ensandecidos.

“Pode me devolver a bola por favor?”

“Ninguém quer chegar nesse momento, mas quando chega, é libertador.”

“Eu só quero a bola, não preciso de mais problemas com meus amigos.”

“Amigos? Você não tem amigos, tem pessoas que fazem muito pouco esforço para te tolerar, e o contrário também pode ser dito.”

“O que te interessa a minha relação? Você é O Mal, não devia ficar por aí brincando com criancinhas, e sim queimando alguma casa ou sequestrando uma virgem para se alimentar.”

“Essa visão simplória dos humanos é sempre digna de riso. Só porque eu sou assim quer dizer que eu sou O Mal? Será que tudo é uma questão maniqueísta? Tudo possui apenas dois lados? A verdade é que, nesse momento, você é muito mais ameaçador do que eu.”

Não entendo o que ele está dizendo. Sinto-o crescendo na minha frente a cada segundo, e quando percebo estamos praticamente cara a cara.

“Você, com toda essa raiva reprimida, esse desprezo que absorve e esse seu ar de superioridade diante das outras pessoas por causa da sua inteligência. Tudo isso gera uma maquina trabalhando no seu subconsciente vinte quatro horas por dia em uma forma de revidar, e com gosto. Então eu chego, e você olha para esse espelho e enxerga o que você realmente é, a fabrica se expande e hoje se torna o dia para fazer a diferença.”

Com uma velocidade assombrosa, ele passa por trás de mim e tira a revista em quadrinhos que estava enrolada no meu short.

“E claro, não parece haver arma do crime mais interessante que a do xerife.”

Percebo que na mão dele está uma wakizashi, mais especificamente aquela que tenho em casa. Não acredito, será que confundi na hora da pressa? Mas, como ela veio parar aqui se fica trancada no armário de vidro? Isso é impossível, essa porra de demônio está querendo me enrolar.

“Primeiro vem com esse discurso mole e depois quer me convencer de que eu peguei a arma? Eu já vi vários caras lá na cadeia, e a verdade é que você é uma caricatura reunindo o pior de todos eles.”

Me sinto mais corajoso, apesar de ele ter uma lâmina na mão.

“Você deve ser um demônio da classe mais mixuruca, porque é daqueles que só ladra, fica pagando de mau aí e não tem coragem de fazer nada.”

Ele usa a sua rapidez de novo, e me vejo entre o seu peito e a arma, a milímetros do meu pescoço.

“Preste a atenção no que eu estou dizendo, seu merda. Se você acha que o mundo está dividido entre o bem e o mal, vai me ouvir e ver que estamos no mesmo time.”

“Você está a ponto de me matar! Não tenho que ouvir nada!”

Me seguro para não chorar.

“Olhe para tudo e todos a sua volta! Você diz que o Rennan não passa dessa vez e ainda não tem coragem para empunhar a arma? Seja honesto com você mesmo uma vez na vida! Seja o Deus que essas pessoas precisam. Seja o juiz. Seja o carrasco. Liberte-se.”

Ele estende a wakizashi para mim.

“Diga para mim: os adultos estão ajudando no seu progresso? Ou só estão projetando em você os sonhos e frustrações da vida amarga deles? Esses retardados que você chama de amigos tem algum futuro? Ou só vão atrapalhar o crescimento dos outros? Será que precisa de mais gente assim na Terra? Você pode detê-los. Ou pode me matar. A decisão é sua.”

Olho para o demônio. Suas feições mudaram, estão com traços mais femininos agora. Não sei se o que sinto é medo, mas estou congelado.

Estou entre fazer a coisa certa e fazer o que eu acho certo.

No momento essas coisas se confundem.

Pego a arma.

Tiro a bainha e fito sua lâmina brilhante. O pulsar do meu coração acelera cada vez mais, pulando como um aluno que está doido para responder uma pergunta. A demonia se aproxima, encosta a mão dela na minha. Apesar de saber que é um monstro, fico excitado.

“Última chance. Estou pronta para deixar você me sacrificar. Corpo e Alma.”

Sua cabeça começa a chegar perto da lâmina. Ela passa a língua na parte afiada, do cabo até a ponta. Sua boca fica coberta de sangue.

Ela me beija.

Sinto o gosto da boca de uma mulher pela primeira vez na vida mas, principalmente, sinto o sabor do liquido vermelho.

Quando acaba, fico querendo mais.

Agora, tenho sede de sangue.

Carlos aparece entre a mata do nada, tomo um susto quando ele fala “te achei” com aquela voz gutural dele. Olho em volta e não acho mais a mulher. Deve ter se escondido.

“Porra cara, tu tá querendo zoar a gente?”

“Que que aconteceu? Eu acabei de achar a bola.”

“Cê ta brincando? Faz mais de duas horas que você sumiu! O pessoal se separou para te procurar e o João foi chamar ajuda lá na cidade.”

Para mim parecia ter passado quinze minutos.

“É, mas eu tô bem, e aqui tá a bola, ó”

Carlos pega a bola e me dá um cascudo.

“Isso é para deixar de ser débil mental. Todo mundo fica preocupado porque você não consegue achar a porra de uma bola.”

Ele se vira e começa a voltar para o campo. Fico um pouco intimidado pela sua altura nos primeiros segundos. Ele é o dobro do meu tamanho.

Uma batida do coração grita. Agora.

Pego a wakizashi nas minhas costas e com um movimento horizontal corto o tendão de aquiles direito dele, Carlos grita de dor, mas com uma mão eu cubro sua boca e com a outra começo a fazer furos no seu tórax e barriga, alternando os alvos entre um movimento e outro. Vejo o chão criar um círculo vermelho gigante onde realizo meu primeiro ritual para chegar mais próximo da divindade regente deste mundo. A cada estocada meu coração palpita de alegria e o ouço dizer que quer mais. Carlos reage tentando morder minha mão e levantando os braços, que acabam por receber cortes rápidos da minha parte para evitá-los, resultando em um ou dois dedos voando. Não sinto a dor das mordidas, porém paro de tapar e rasgo suas bochechas, ficando extremamente dolorosas quando ele tenta mexer o maxilar.

“Quero que saiba de uma coisa: você foi o primeiro, mas pode ter certeza que os seus amigos terão o mesmo fim. Eu vou fugir dessa cidade e as pessoas só vão descobrir quando eu estiver horas longe daqui, se não dias, porque ninguém vem nessa mata imunda. Seus bostinhas! Vão virar exemplo para que todos os moleques como vocês saibam que alguém está por aí fazendo o que a justiça não pode fazer. Eu sou Deus. Tenho o poder e a vontade, e isso basta.”

Termino passando a wakizashi na garganta de Carlos.

“Meu herói.”

A demônia voltou, e cada vez parecia mais bela e graciosa: perdeu os dois olhos extras, e parece emitir uma aura luminosa, mesmo que o seu corpo ainda passe a impressão de ser só fumaça.

“Eu ainda não acredito que fiz isso. Foi tão... bom”

“Era esse o sentimento que eu falava quando disse para ser sincero consigo mesmo. A liberdade das amarras humanas é algo que você sabe que não tem preço. É o que te torna superior a esse povo, que vai agonizar diante dos seus pés.”

“Se depender de mim, vou fazer cada um sofrer como deve.”

Começo a caça aos outros, mas noto que não ouço gritos em nenhum lugar, então eles já devem ter voltado para o campo ou até mesmo para casa. Melhor, assim eu poderia acabar com todos de uma vez.

Ando com a cabeça tranquila de volta para o campo, noto meus pés vermelhos, porém não importa, eles eram burros, não reparariam.

Estão em rodinha, provavelmente tramando contra mim, quando chego com um braço estendido e com a bola na mão.

“Ei Rennan.”

“Finalmente. Onde você se meteu porra?”

“Duvido você tirar a bola da minha mão.”

“É o que, seu merda?”

“Vem cá tirar a bola da minha mão se você é homem.”

“Esse bosta deve tá de sacanagem, primeiro deixa a gente assustado e agora essa palhaçada.”

Ele vem em passos firmes, e vejo em seus olhos que está determinado a me bater dessa vez. Quando chega, dá uma porrada na bola para tirá-la do caminho.

A lâmina parece estar com mais sede que eu. Ela sai voando das minhas costas em direção ao abdômen dele.

Imagino como parece estar a situação pelos olhares de meus antigos colegas. Eles vendo Rennan cair sem aparente razão. O barulho que a boca dele faz enquanto puxa o ar. Vê-lo se contorcer no chão. A cobra rubra que rasteja para longe do corpo. Precisam olhar para todos esses elementos para perceberem que estou de arma empunhada, e já começo a correr na direção deles.

Sinto-me com asas nos pés. Levito ante a maravilhosa possibilidade de derramar o sangue de todos os assassinos da minha liberdade. Todas as pessoas que tentam me enquadrar nos seus padrões medíocres de vida sofrerão ante a minha lamina, e fugirei pelos morros de Minas com a minha amada que me trouxe esse presente e fardo de ser o melhor entre todos os homens.

“Vinicius pare imediatamente!”

Enquanto me aproximo de André, vejo quem João trouxe para ajudar a me procurar.

O Xerife.

Encaramos-nos. Não posso vacilar sob a vigília dela.

“Se você não sair da frente, vai ser o próximo” digo para meu adversário. Ele fica rígido ante a ameaça, fez isso durante toda a sua vida.

“Eu não te criei para ser assim moleque, é melhor você largar essa arma senão eu esqueço que sou seu pai”.

Já é incrível ele ter lembrado.

Encarei o perigo uma vez. Ele virou meu amante. Encararei quantas vezes for preciso para ser livre.

Começo a correr. Seguro a wakizashi como se fosse um punhal. Não desvio os olhos do meu inimigo. Vejo ele tremendo levemente a mão. Salto para atingir seu pescoço.

Ouço a bala sair.

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