Ode à Aurélia Johanna Saramago
Se um dia ouvis falar de Aurélia, vinde à terceira pensão da Rua das Chagas e dais uma olhada por vós próprios: Aurélia nunca existiu.
Como uma moça desaparece da face da terra, sem deixar vestígios de sua vida plena e conturbada, sem deixar cartas, escrituras, gravuras ou objetos? Aurélia nunca existiu; no entanto, como explicar de quem é o coração que pulsa no interior da velha pensão, aquele que suga os amores de mulheres enamoradas pelos contornos vistos da janela, a luxúria dos homens ensimesmados?
Aurélia existiu, sim, e vós conheceis essa premissa. A sentença envia calafrios pelo corpo das crianças, faz tombar adultos saudáveis e espanta os clérigos de seu conforto. O pensamento de cachos aloirados bailando no vento nordeste, límpidos como aurora boreal, faz tremer lábios, elevar sexos e ensandecer até o mais racional dos seres.
Aurélia existiu, e a prova está na figura da velha bambaleando pela estrada, aparência de ameixa seca, rugas em sua face e bocas ao longo do corpo que só dizem profanações contra seu eu passado: aquela moça jovem escancarada no espelho quebrado, de braços cruzados e nariz arrebitado.
Aurélia existiu, e vos imponho que pareis de pensar do contrário! Se as pétalas em suas vestes fossem falácias, o valor da hipocrisia seria mínimo. Que fazeis, para duvidar-vos de uma velha coroca, plantada no cais de São Francisco? A jovem existiu em vossos corações, em cada mentira, em cada soberba, em cada preguiça, em cada devaneio, em cada luxúria, em cada gula, em cada inveja, em cada ciúme, em cada pensão que abriga infiéis. A jovem existiu na Rua das Chagas e no porto de Rusccana, plantou-se na mente do marinheiro negro e no chapéu do almirante Carlos de Pádua Filho, além de esgueirar-se pelos brotos de Hanna Carolina, irmã deste, deflorando qualquer resquício de mácula que ela detinha. A jovem existiu nas minhas curvas envelhecidas e nos meus olhos de peixe, existiu e andou por essa cidade, ora enriquecendo-a, ora desnivelando-a.
Aurélia existiu como hoje existem presidente, pão, linguiça e cachaça; e sou obrigada a dizer que ela já havia usufruído mais dos prazeres banais que qualquer animal com que porventura topeis no meio do planalto.
Aurélia existiu, e ainda existe, nesse vosso coração infectado – por mágoas dela, ânsias dela, ideias dela.
Aurélia Johanna Saramago não é ficção, lenda para as crianças se afastarem das velhas com sacolas suspeitas ou princesa de contos de reis e rainhas. A moça é fruto do meio em que foi colocada e fez de seu império algo tão sutil que perpetuou por séculos a fio antes de um de vós dizer:
"Quem é Aurélia? Aurélia é fantasia."
E de sua história restaram apenas minhas lembranças.