Roxo
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A jovem encarava o espelho.
Em todos os seus dezasseis anos de vida nunca julgou que pudesse odiar tanto o reflexo que a fitava de volta.
Os cabelos castanhos-escuros, quase pretos, lisos e finos, a cara pálida, amarelada, típica da sua descendência, e os olhos castanhos, normais e aborrecidos.
Horrível.
Aquela aparência comum e enfadonha que toda a gente, sem excepção, naquele maldito país envergava, era horrível. E ela odiava-a.
Por que aquele aspecto maldito era o culpado de tudo o que estava a sentir. Aquele espectro de cores neutras e vulgares tinha feito um rasgo no seu coração. Por que ele era diferente.
O rapaz que tinha aparecido no telhado da escola, a meio da hora de almoço, ofegante e sorridente, era diferente.
Quando ela se aproximou para perguntar se estava tudo bem não esperava ser encarada por olhos grandes, quase sem qualquer traço oriental, e azuis. De um azul tão escuro como o céu ao anoitecer.
Ela não esperava que nos próximos dias passasse a procura-lo com o olhar pelos corredores, nem que fosse sentir o rosto corar quando o via sorrir de volta e acenar-lhe com tanto fervor.
Não esperava que ele fosse tão aberto. Ele falava pelos cotovelos e contava-lhe sobre todos os seus sonhos e planos para o futuro. E ela ouviu-o, permitindo-se também sonhar um pouco naquela esperança emprestada.
Uma esperança que foi esmagada assim que ouviu as risadas irónicas das colegas. Assim que notou certos olhares que lançavam a ele e assim que ouviu o que lhe chamavam pelas costas.
Estrangeiro.
Seria ele mesmo estrangeiro? Era essa a razão daqueles olhos estranhos e brilhantes? Ela quis perguntar-lhe… Ela perguntou-lhe.
E, com aquele sorriso gigante e tonto, a resposta doeu-lhe.
— Não sei.
Não importava se ele o era ou não. Para ela, não importava. Mas para aquele mundo que os rodeava parecia importar.
Não interessava o quanto ele era inteligente, o quanto ele se esforçava, o quanto ele era simpático e carinhoso. Não, nada disso interessava. A cor dos olhos… a cor dos olhos é que interessava.
Olhos azuis.
Olhos que foram vistos pelo seu pai, naquela tarde, em que ele tinha sugerido levá-la até a casa.
Com genuína preocupação e carinho, ele tinha-se oferecido para caminhar com ela no percurso de volta, partilhando aquelas ideias sonhadoras e fantasiosas com ela, conseguindo fazê-la acreditar num futuro quase feliz.
E o seu pai aguardava-a. E o seu pai viu-o. E o seu pai… odiou-o.
Agarrou-a pelo braço para longe dele e empurrou-o, como se de lixo se tratasse. Cuspiu palavras nojentas e repugnantes, insultou-o, ameaçou-o e quase o agrediu se não fosse por ela o ter segurado a tempo.
Ela viu aquele rapaz magricela e simpático erguer-se, viu-o curvar-se de forma respeitosa perante aquele homem horrível, a quem ela um dia tinha chamado de pai, e viu-o desculpar-se pela sua rudeza e petulância. Prometendo nunca mais aproximar-se dela, sem sequer olhar para ela, ele foi-se embora.
Ela sentiu o coração afundar-se no seu peito. Sentiu-o partir-se em mil e um pedacinhos e sentiu aquela vaga esperança fugir-lhe da alma.
Gritou com o pai, disse-lhe que estava errado, que aquilo não fazia qualquer sentido. Mas o que não fez mais sentido foi a bofetada que ela sentiu atravessando-lhe a bochecha.
Trancada no seu quarto e proibida de sair para qualquer sítio, excepto para a escola, ela percebeu que o mundo era injusto. Percebeu que o mundo não sabia aceitar o que era diferente, não queria. E ela percebeu o quanto era horrível.
Mas ela também percebeu algo mais.
Ela não precisava que o mundo mudasse. Bastava ela mudar.
E foi com isso em mente que ela despejou todo o conteúdo do frasco nos cabelos castanhos-escuros e o roxo vivo apoderou-se deles.
Com um sorriso no rosto, ao encarar a sua nova figura, ela soube que nem queria que o mundo mudasse mesmo. Ela só queria poder estar junto daquele rapaz sorridente de olhos azuis meia-noite. Para sempre.
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Fim