Nota nove: Não queira mudar tudo.
A mãe da Lola não gostara nada do que a adolescente fez quando todos jantavam na mesa da cozinha: a menina, brava e do contra como sempre foi, decidiu, por si própria, usar o garfo em vez de uma colher para tomar a canja que a mãe tinha feito àquela noite. A situação causou um tremendo desconforto em todos os que aproveitavam a refeição, que falaram mal e reclamaram da escolha da filha ou irmã. Lola, cansada de ouvir os julgamentos sobre como ela queria viver e a maneira que contrariava o sistema comum, deixou a raiva consumir toda a sua cabeça e, sem refletir no que estava prestes a fazer, jogou o seu prato de porcelana no chão, ainda cheio de sopa de galinha, quebrando-o em mais mil pedaços de porcelana. Depois de se dar conta do que havia feito, subiu uma temida consciência pesada até atrás da sua testa rosada, que moveu as pernas dela das escadas ao seu quarto, onde se isolou do mundo por meio da tranca da porta.
Quando Lola se deitou na cama e acobertou-se dos pés à cabeça, a já envergonhada menina pegou o seu telefone, que se alojava na escrivaninha do lado dela, e ligou para o seu melhor amigo do colégio, que tinha na cabeça as mesmas revoltas idéias da outra. De debaixo de seu cobertor, Lola desabafou para o amigo toda a tristeza que vinha passando desde que começou a participar das manifestações contra o sistema comum da prefeitura com ele, disse também que não aguentava mais sentar-se do lado de seus familiares nas refeições, que, de acordo com a visão dela, tinham as mentes fracas e limitadas para perceber o que o governo vinha fazendo com os que lhe obedeciam. Ela estava cansada de tudo o que os outros diziam sobre ela e o seu jeito revolucionário. As últimas frases dela na ligação foram apelos para que seu amigo viesse buscar ela no seu quarto, e livrá-la de todos os problemas e preocupações que esta vinha passando.
Horas depois, o seu amigo ainda não tinha aparecido para buscá-la, acordando pensamentos medrosos na mente de Lola, que refletiu sobre a cama se, uma vez na vida, já teve sequer um amigo de verdade. Durante constantes frases filosóficas que Lola pronunciava debaixo do cobertor, seu irmão bateu na porta trancafiada e avisou-a que sua mãe a mandava descer e consertar a sujeira que havia feito horas antes. Sem deixar sair uma sílaba da goela, e sem responder ao irmão, a menina vestiu um casaco grosso e saiu pela janela do quarto, mantendo-se com as pontas dos pés no peitoril e aproveitando o ar frio que massageava as suas bochechas. No tempo que observou a rua, molhada pela chuva, que atravessava a frente da sua casa, Lola repensou no motivo que a trouxera até àquela situação: um mísero garfo em um momento inoportuno e desnecessário.
Em seguida daquela mais uma reflexão que os adolescentes fazem toda noite, a garota voltou ao quarto, destrancou a porta e desceu as escadas, dirigindo-se à cozinha, onde pediu perdão aos seus pais e varreu o chão coberto de cacos de porcelana. Após tudo ficar bem, Lola pediu mais um prato de canja e, desta vez, escolheu usar uma colher para levar a sopa à sua boca.
Uma hora mais tarde, a família, que assistia calma a um programa na televisão, escutou algo quebrar no andar de cima, ocasionando que todos subissem as escadas para verificar o que mais havia se quebrado àquela noite. Depois de vasculharem o quarto dos pais e do irmão, eles foram com pressa ao quarto de Lola, onde encontraram o vidro da janela espalhado em cacos. Ao olharem pela janela, a família deparou-se com o melhor amigo de Lola tremendo no frio carregando uma mochila bastante grande.
Para avisar que havia chegado para resgatá-la dos problemas familiares, o amigo pensou em jogar pedrinhas na janela do quarto de Lola, porém acabou arremessando uma pedra com muita força.