Depois de engolir poeira pela estrada ele enfim chegava a casa onde fora criado. A vizinhança parecia a mesma, as roupas sacudiam ao vento no varal e o cão cochilava no batente da porta. Não o mesmo cão que corria com ele naquele quintal durante a meninice; esse já havia dobrado o cabo da boa esperança há tempos… Outro cão! Um vira-latas negro, de porte grande e ronco ativo de cão preguiçoso.
Na varanda rodeada de vasos de rosas vermelhas e miúdas, o balanço de ferro trazia consigo a lembrança dos namoros de final de tarde, onde ele e os amigos, por muitas vezes, beijavam escondido e descobriam as incertezas de vida amorosa. Sobre a porta de entrada a placa ‘bem vindo’ parecia corroída por cupins e uma mariposa estacionada no cantinho lembrava que aquilo era interior. Ele quase não via mariposas na cidade!
Lá de fora se ouviam as lamentações abafadas das comadres e compadres da vizinhança que, seguiam a tradição e ‘bebiam a defunta’. O choro curtinho e ininterrupto apontava mais incertezas. Porque ele havia passado tanto tempo afastado? Porque esperou tanto para retornar, adiando sempre sua chegada para o próximo final de ano, chegada essa que nunca acontecia. Ele sabia que ela não poderia esperá-lo para sempre. Sabia que o tempo, assim como os cupins na placa sobre a porta, corroía as pessoas e levava delas o melhor: a vida. Faltou-lhe coragem pra entrar.
Sentou-se no balanço da varanda, balançando ao som do ronco do cão e das lamentações que ecoavam lá dentro; lá dentro da sala, lá dentro dele… O coração queria transbordar, como se a culpa não encontrasse mais espaço pra crescer. Ela se foi depois de tanto esperar por sua visita. Ele veio quando já não havia mais tempo. As horas se passaram e como num sonho, reviveu, ali naquela varanda, os tempos de moleque. Em pequenos flashes embaçados as estripulias da infância voltavam gradativamente à memória… Comer manga trepado na árvore, o banho no riacho com os amigos que o julgavam inseparável, o cheiro da broa de milho assando no forno de lenha, a procissão de beatas na Sexta Feira da Paixão, os esporros que tomava quando, catando vaga-lume no mato, passava da hora de jantar… Sem saber ao certo depois de quanto tempo, foi despertado pelo rangido da porta que se abria.
Porta que se abria dando passagem ao cortejo de senhoras todas com véu sobre a cabeça, e de homens, todos segurando um chapéu de palha sobre o peito. Na outra mão carregavam cada um deles uma alça do caixão barato, que seria corroído também, e onde dentro descansava o corpo de sua avó. As comadres sussurravam a Ave Maria, os comprades, cabeça abaixa, caminhavam sérios, a passos lentos. Eles carregariam um caixão até a cova; ele carregaria culpa e remorso por toda a vida. O cortejo acordou o cachorro, que levantou-se e seguiu junto.
Sentado no balanço ele acompanhava com olhar vago. Ela ia, depois de tanto esperar por ele. O cão, fiel até o último momento, a acompanhava. Talvez aquele cão tivesse mais direitos que ele, talvez até sentisse mais que ele, afinal se manteve fiel a ela. Chorou pela ausência da avó e pela solidão que o cão teria de suportar. Chorou pela solidão da avó esquecida por anos naquela casa de campo.
Ficou no balanço. Não acompanharia o cortejo. Não iria ao enterro. Sepultar a avó seria jogar pás de terra sobre seu passado e ele não permitiria isso. Da varanda, corroído pelo tempo, que ele mesmo deixou passar, e pela culpa que o consumia, assistiu um cão sem culpa que guiava sua dona até a última morada…